Um dos personagens mais fascinantes da história de São Paulo é o ladrão Gino Amleto Meneghetti, um italiano nascido em Pisa, em 1878, que se mudou para o Brasil ainda moço, fugindo da justiça (começou a roubar aos 14 anos). Foi preso incontáveis vezes ao longo da vida, tendo passado a maior parte dela na prisão ou escondido da polícia. Dedicava-se a roubar basicamente joias e relógios, que considerava bens supérfluos que só serviam para "alimentar a vaidade dos ricos".
Não se considerava ladrão e citava o filósofo anarquista Pierre-Joseph Proudhon para justificar suas incursões ao patrimônio alheio: "Toda propriedade é um roubo", repetiu várias vezes diante de delegados e juízes. Abominava a violência e, embora andasse armado, não consta que tenha dado um único tiro em alguém.
Em meados da década de 1920, Meneghetti já era conhecido em toda a capital paulista por seus roubos cinematográficos e suas fugas impossíveis. Pulando como gato sobre os telhados ou rastejando feito cobra pelas tubulações de esgoto, sempre dava um jeito de escapar ao cerco policial. Gentil com as mulheres e bem trajado (terno, gravata e chapéu), circulava em qualquer ambiente sem levantar suspeitas. Ousado, deixava um cartão de visita com seu nome em lugar visível, na residência ou comércio de sua vítima, para que não houvesse dúvida de que ele era o autor da "expropriação".
Agia sempre sozinho, nunca em parceria, por achar que ninguém, além dele, suportaria a tortura sem abrir o bico. Tinha um código de ética próprio: jamais recorria à violência, preferindo usar a inteligência para subtrair o que queria, e sob nenhuma hipótese roubava de um pobre ou de um operário. Seus alvos eram sempre joalherias, casas de câmbio ou mansões. Dilapidou quase todas.
Meneghetti foi preso algumas vezes no início dos anos 20, mas conseguira fugir de todos os presídios por onde passou. Sua primeira fuga foi uma das mais mirabolantes: depois de ser pego tentando cavar um túnel com os companheiros de cela, foi posto em isolamento dentro de um poço estreito e profundo coberto com uma grade de ferro.
Durante a madrugada, aproveitando um vacilo da guarda, Meneghetti escalou as paredes do poço com a destreza de um artista de circo e arrancou as grades na unha. Arrastou-se pela escuridão do pátio, sem ser visto pelo sentinela, livrou-se das roupas e mergulhou no rio Tamanduateí de uma altura que faria qualquer mortal voltar de joelhos à própria cela.
Nadou até a margem e subiu no telhado da primeira casa que encontrou pelo caminho. Completamente nu, saltando de telhado em telhado, chegou até a residência de seu tio, onde tomou cachaça para esquentar (estava congelando de frio), vestiu roupa nova e pegou um revólver emprestado. Só quando amanheceu descobriram que Meneghetti havia fugido.
Durante anos a polícia esteve à sua procura. E durante anos ele burlou os investigadores, chegando ao ponto de comparecer, sem o bigode que lhe definia o rosto, numa entrevista coletiva que o chefe de polícia (cargo equivalente ao de secretário de segurança pública) concedeu à imprensa. Na ocasião, ele afirmou aos jornalistas que iria prender Meneghetti em 48 horas. Mas assim que a entrevista chegou ao fim, Meneghetti entregou um bilhete para um repórter na entrada da delegacia: "Então por que não me prendeu agora? Eu era aquele rapaz de chapéu e roupa clara, sentado à sua esquerda".
No dia seguinte, os jornais publicaram que Meneghetti esteve presente o tempo todo na coletiva, sentado quase ao lado do chefe de polícia - que saiu do episódio completamente desmoralizado.
Prender Meneghetti passou a ser, mais do que nunca, questão de honra para Roberto Moreira (este era o nome do chefe de polícia). Em 1926, numa manhã de inverno rigoroso, após semanas de campana em frente à residência onde morava Concetta, mulher de Meneghetti, a polícia deu voz de prisão assim que este apareceu para visitá-la. Como o larápio conseguiu entrar e trancar a porta, teve início um cerco policial que durou dez horas e mobilizou um aparato militar de mais de 200 homens.
O gatuno resistiu o quanto pode: atravessou o bairro pulando os telhados, escalou paredões de quatro metros de altura, escondeu-se em uma latrina, escapou por becos e vielas com a polícia atirando em seu encalço, passou horas imóvel num sótão escuro a poucos metros de um policial, despencou do forro em cima da mesa de jantar no momento em que uma família estava reunida, enfiou-se em arbustos cheios de espinhos e tornou a voltar para sua casa numa tentativa desesperada de despistar seus perseguidores. Por fim, foi obrigado a se entregar, mas não sem antes se despedir de Concetta com um abraço e um beijo.
Uma multidão acompanhou a operação do lado de fora. Quando esgotaram-se todas as possibilidades de fuga, Meneghetti jogou a arma ao chão e saiu com as mãos levantadas. Covardemente, a polícia começou a espancá-lo ali mesmo. Muitos não acreditavam que Meneghetti fosse real. Até aquele momento havia quem dissesse que o "gato dos telhados" era uma lenda urbana inventada pela imaginação fértil do povo.
Os jornais da época relatam que a polícia evitou que Meneghetti fosse linchado pela população. A versão de Meneghetti, porém, é um pouco diferente: segundo ele, a massa estava enfurecida era com a polícia, que precisou sair às pressas do local para impedir que o ladrão fosse resgatado pelos populares.
Meneghetti chegou à delegacia com o rosto desfigurado pelas coronhadas que tomou dentro do carro. Para piorar sua situação, o delegado Waldemar Dória morreu durante o cerco, atingido por dois tiros nas costas. Embora o calibre das balas retiradas do corpo fosse o mesmo usado pela polícia, Roberto Moreira atribuiu a morte a Meneghetti, que passou por inúmeras sessões de tortura, inclusive com pau-de-arara e choque elétrico, para confessar um crime que não havia cometido. Como suportasse de modo estoico o suplício, sem ceder aos verdugos, jogaram-no numa solitária, onde ficou incomunicável e sem banho de sol por longos 15 anos.
Durante esse tempo, Concetta morreu de um ataque cardíaco sem que ele pudesse se despedir. Isolado, Meneghetti desenvolveu algumas manias, como usar a água da latrina para lavar a comida que lhe serviam na cadeia, com medo de que estivesse envenenada. Por não reconhecer no sistema o poder legítimo para privar-lhe de liberdade, enchia a boca com as próprias fezes e cuspia em direção a qualquer autoridade que se aproximava de sua minúscula cela. Passava o dia gritando: "Io sono un uomo!" ("Eu sou um homem!").
Cumprida a pena, saiu da prisão em 1944. Livre, arriscou a sorte em cidades do Sul do Brasil praticando roubos a joalherias e casas de câmbio em cidades como Curitiba, Ponta Grossa, Porto Alegre e Florianópolis. Retornou a São Paulo após uma longa temporada e tentou trabalhar honestamente no comércio ou fazendo pequenos bicos. No entanto, o que ganhava era muito pouco.
Inconformado com a condição precária imposta pelo trabalho, voltou a roubar. Gostava da vida boa e toda a fortuna que angariava com o roubo de joias era aplicada nos cassinos (seu vício era o bacará), nos cabarés e em restaurantes caros. O que sobrava ele dava aos pobres. Alternava períodos de grande fartura com outros de dura carestia. Ele se via e aos pobres como vítimas de um sistema de exploração no qual somente os "verdadeiros ladrões" podiam gozar dos prazeres terrenos.
Foi preso de novo algumas vezes, fugiu outras tantas (não vou descrever todas as suas fugas, cada uma mais extraordinária do que a outra) e, por fim, caiu novamente numa penitenciária de onde não havia como sair. Chegou, inclusive, a passar duas semanas com os pés, os punhos e o pescoço atados a correntes num antigo tronco de escravos.
Voltou às ruas somente em 1959, graças aos esforços do advogado Paulo José da Costa Jr., um dos poucos amigos de sua confiança. Envelhecido e sem a agilidade de antes, recolheu-se até que seu nome não passasse de uma velha lembrança perdida na noite dos tempos. Todos julgavam que Meneghetti estava morto ou havia voltado para a Itália.
Em 1970, porém, aos 92 anos de idade, foi preso pela última vez tentando arrombar a porta de um palacete na rua Fradique Coutinho, na Vila Madalena. Trazia nas mãos o velho pé de cabra, fiel companheiro de trabalho, que já não operava como antes. Morreu em 1976, pobre e solitário como sempre foi.
Atendendo ao seu último desejo, seu amigo e advogado tratou de cuidar da cremação de seu corpo e suas cinzas foram atiradas ao vento, numa rua qualquer de São Paulo. Uma de suas últimas linhas escritas foi justamente sobre a própria morte: "Não tenho nenhuma razão plausível para estar cá nesta terra que me causa nojo. Que o vento espalhe meu pó e que ele se dilua no ar."
De suas várias entrevistas para a imprensa, incluindo a melhor delas para o Pasquim, extraí essa coletânea de frases que ajudam a compor um retrato de sua personalidade instigante:
"Havia dentro de mim uma revolta como a de Spartacus. Eu era um escravo do rio Arno. Eu e todos os meus."
"O suplício do pau-de-arara existente aqui neste gloriosa capital paulista avilta o povo brasileiro e é digno de uma Gestapo."
"O comerciante é um ladrão que tem paciência."
"Mantive minha saúde no cárcere por gentileza de meus admiradores que me levavam frutas, remédios e outras coisas. Creio que devo minha popularidade ao fato de nunca ter assassinado ninguém, não ter cometido crimes sexuais e ter ajudado os pobres."
"A vida sem sensação é demasiado estúpida."
"Não me arrependo de nada porque não fiz nada de errado. Roubei de quem tinha demais e posso garantir que roubei ladrões muito maiores do que eu."
"Para mim, roubar é uma necessidade quase física. Roubando os ricos satisfaço a minha índole de revoltado contra o egoísmo e o desequilíbrio social."
"Sou livre. Nasci livre e nunca serei um escravo por convicção."
PS:
Há bons livros para quem quiser saber mais sobre a história que narrei acima. Aliás, recomendo a leitura porque puxei muita coisa pela memória e posso ter cometido equívocos em relação a datas e fatos acontecidos. São eles: "Meneghetti — O Gato dos Telhados", de Mouzar Benedito (Boitempo) e "O Incrível Meneghetti", de Paulo José da Costa Jr. (Jurídica Brasileira). "O Grande Ladrão", de Renato Modernell (Sulina) é um livro infanto-juvenil e, portanto, romanceado. O melhor de todos é "Memórias" — Vida de Meneghetti", de 1960. Trata-se de um livro autobiográfico que parte de extenso depoimento dado pelo "gato dos telhados" ao autor, M. A. Camacho. Este exemplar é raríssimo (o único disponível neste momento na Estante Virtual custa R$ 1.250,00). Por incrível que pareça, a vida de Meneghetti nunca foi contada no cinema, à exceção de um curta-metragem feito por Beto Brant (Dov'e Meneghetti, 1989).
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