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(Agustin Marcarian/Reuters) |
Na região Norte, quatro trabalhadores da JBS infectados fizeram o teste de covid-19 por conta própria para conseguir afastamento.
Na segunda quinzena de maio, após
quatro membros de sua família terem contraído o novo coronavírus, a dona de
casa Sônia* decidiu que deveria procurar ajuda. Moradora de São Miguel do
Guaporé, em Rondônia, ela estava preocupada com a disseminação do vírus na
cidade de 23 mil habitantes. Em comum, os familiares tinham o emprego no
frigorífico da JBS no município. Sônia resolveu, então, denunciar ao sindicato
da categoria a escalada dos números de casos de Covid-19 na empresa. “Estava
todo mundo adoecendo e ninguém fazia nada, a empresa não parava nem prestava
socorro. E a gente não sabia o que era. Entrei em pânico. Foi a única solução [denunciar]
que encontrei”, relata.
O filho mais velho de Sônia foi o
primeiro da família a sentir os sintomas da doença. Começou com uma gripe, que
acometeu muitos colegas da empresa ao mesmo tempo. “Nesse momento, eu já fiquei
em alerta porque a epidemia já estava rodando o mundo inteiro. Mas, para eles,
no frigorífico, era só uma gripe”, afirma a dona de casa. A mãe conta que o
rapaz teve febre e chegou a desmaiar no banheiro, enquanto se arrumava para o
trabalho. “Ele sentiu muita fraqueza. Foi para o hospital e tomou medicação,
mas no dia seguinte já estava dentro da empresa de novo. Ele não foi afastado”,
conta. Na mesma semana, ele e colegas só conseguiram um atestado após fazer o
teste da Covid-19 por iniciativa própria. “A empresa não deu assistência para
ninguém”, diz Sônia.
Esse cenário já se repetia em
diversos frigoríficos pelo país: no início de maio, a Procuradoria-Geral do
Trabalho (PGT) anunciou inspeções em mais de 60 frigoríficos em 11 estados,
entre eles Rondônia, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Segundo relatório do
Serviço de Inspeção Federal (SIF), do Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento (Mapa), oito abatedouros paralisaram suas atividades durante o
mês em decorrência da propagação da Covid-19.
Para alívio de Sônia, no dia 27
de maio, a Justiça do Trabalho determinou a suspensão imediata das atividades
da JBS em São Miguel do Guaporé. Além de seus dois filhos, a nora e a irmã de
Sônia também contraíram a doença. “Fiquei com muito medo e preocupada. Tenho
problema de saúde, pressão alta. E eu cuido do meu neto de 2 anos, filho da
minha nora e do meu filho, que foram infectados”, diz.
Até o dia 17 de junho, a
cidade tinha seis mortes e 617 casos de Covid-19 confirmados, 280 ainda
monitorados pelas autoridades de saúde. Segundo o Ministério Público do
Trabalho (MPT), ao menos 260 dos casos confirmados são de trabalhadores do
frigorífico. Para Sônia, não há dúvidas que a planta da JBS, que não reduziu o
quadro de funcionários por turnos no período de pandemia, foi o propulsor da
contaminação em São Miguel do Guaporé: “O frigorífico aqui não deu trégua. É de
segunda a sábado”.
Na primeira semana de junho, a
Justiça do Trabalho de Rondônia decidiu que a empresa só poderia retomar as
atividades frigoríficas após a adoção de medidas de segurança, como a testagem
em massa de seus trabalhadores. A empresa anunciou, no dia 5 de junho, que
reabriu a unidade após realizar “uma triagem rigorosa em 100% dos seus
funcionários”.
Frigoríficos ajudaram
interiorização do vírus, diz MPT
A 300 quilômetros de São
Miguel do Guaporé, o município de Chupinguaia (RO) registrou o aparecimento da
Covid-19 na primeira semana de junho. Em quinze dias, a prefeitura contabilizou
nove casos da doença – apesar de pequeno, o número assusta a população, estimada
em 11 mil habitantes em 2019. “Aqui parece a cidadezinha do pica-pau: se fechar
alguma coisa, fica só a bolinha de palha correndo pela cidade”, brinca a
faqueira Fernanda Fernandes, de 32 anos, que trabalha no setor de abate da
Marfrig — uma das maiores do setor frigorífico no país, e que registrou um caso
da doença em seu alojamento em Chupinguaia.
O medo dos moradores é que a
propagação do vírus venha a colapsar um sistema de saúde já frágil na região,
relata Fernanda. “Principalmente por ser uma cidade pequena, não ter recursos
de saúde. Você tem que sair da cidade para poder ter um atendimento melhor.
Aqui é uma cidade muito pequenininha, só tem postos de saúde, não tem um grande
hospital que tenha todos os recursos. Uma contaminação muito grande aqui seria
bastante complicada.”
Para evitar contágio rápido, a
Marfrig afastou pessoas que tiveram contato com o funcionário exposto ao vírus,
caso de Fernanda. “Mas, antes de saber que eu poderia ter tido contato com
coronavírus, trabalhei o dia inteiro na empresa”, diz a trabalhadora, que ficou
em casa por 15 dias até conseguir fazer o teste, que deu negativo.
E ainda que a empresa esteja
aplicando medidas preventivas, como a orientação do distanciamento de 1,5
metro, a profissional relata que ainda existe receio entre os trabalhadores, já
que muitos trabalham no mesmo ambiente. “São mais de 80 funcionários no meu
setor, e queira ou não queira, não ter contato físico é impossível quando
estamos trabalhando”, afirma. No último mês, a produção nem o ritmo diminuíram:
“Não parou: são mil bois por dia, 2 mil peças desossadas… Continua a todo
vapor, não para não”.
O potencial de disseminação do
vírus na região aumenta pela quantidade de trabalhadores da Marfrig que vivem
em outros municípios. O caso ocorrido no alojamento da empresa, por exemplo,
não entrou nas estatísticas oficiais de Chupinguaia porque o funcionário mora
no alojamento da empresa, mas fez o teste no município onde vive com a família.
Trabalhadores de cidades diferentes da região, como Vilhena e Alta Floresta
d’Oeste, passam a semana nos três alojamentos da empresa e voltam para suas
casas em ônibus fretados, às sextas.
Em Cianorte, município de 82
mil habitantes localizado no noroeste do Paraná, as atividades do frigorífico
Avenorte foram suspensas por 14 dias após uma decisão da Justiça do Trabalho,
no dia 22 de junho. Na liminar, o juiz Rodrigo da Costa Clazer pontua que, de
19 de maio a 9 de junho, 193 trabalhadores do abatedouro tiveram diagnóstico
positivo para a Covid-19. O número representa 62% dos casos de contaminação
pelo novo coronavírus na cidade.
O deslocamento de
trabalhadores de diversos municípios para cidades com sedes de frigoríficos é
uma característica do setor em todo o país – e isso tem contribuído para a
propagação do vírus por cidades do interior, pontua a procuradora Priscila Dibi
Schvarcz, do MPT no Rio Grande do Sul. Os números da região Sul, que abriga a
maior quantidade de abatedouros do país, chama atenção: em Concórdia, no oeste
catarinense, trabalhadores de frigoríficos são mais da metade do número de
casos de Covid-19 da cidade.
No estado do Rio Grande do
Sul, um terço dos casos confirmados da doença no estado, no fim de maio, eram
trabalhadores de frigoríficos. Dos 30 municípios gaúchos que lideram o número
de Covid-19 no estado, 28 são sede de frigoríficos ou cedem trabalhadores para
as empresas, informou a procuradora do MPT. “O setor tem se apresentado como
uma importante mola propulsora de casos, importante para a dispersão e
interiorização da Covid-19 no Rio Grande do Sul”, sentencia a procuradora do
trabalho.
No estado, a situação mais
crítica ocorreu no município de Lajeado. A cidade de 84 mil habitantes
contabilizou 1.585 casos da Covid-19 até o dia 22 de junho e registrou 21
óbitos. A incidência de casos no município, de 1.873,5 a cada 100 mil
habitantes, é bem mais alta que a da capital gaúcha, Porto Alegre, onde o
índice é de 114,2 casos a cada 100 mil habitantes. Devido aos surtos em
frigoríficos, houve testagem em massa nas empresas: só na sede da BRF foram
contabilizados 959 casos após a realização dos exames. Na unidade da empresa
Minuano, foram 432 casos positivos para o novo coronavírus. No momento, a
prefeitura monitora 12 casos ativos.
Uma reportagem do site O Joio
e O Trigo apontou que ao menos 80% dos frigoríficos de inspeção nacional estão
localizados em cidades com menos de 100 mil habitantes, e 42% deles, em cidades
com menos de 30 mil habitantes. O levantamento mostra também que mais de 90%
dos municípios brasileiros com frigoríficos de inspeção federal têm casos de
Covid-19.
Dados mais recentes do boletim
epidemiológico do Rio Grande do Sul informam que o estado ainda acompanha 24
surtos em frigoríficos e laticínios, que somam mais de 26,3 mil trabalhadores.
Entre eles, mais de 3 mil tiveram o diagnóstico confirmado laboratorialmente.
Foram registrados quatro óbitos de trabalhadores.
Relutância às recomendações
Recomendações foram expedidas
para o setor quando ainda não havia casos da doença registrados nas empresas.
“Mesmo antes desses casos aparecerem no Brasil, nós estávamos acompanhando esta
situação porque o MPT acompanha o setor em razão de outros problemas que são
característicos, como doenças osteomusculares”, explica a procuradora do
MPT-RS.
No dia 31 de março, por
exemplo, um documento elaborado pelo MPT apontou quais medidas preventivas
específicas deveriam ser tomadas pelos abatedouros brasileiros. A orientação
foi dada devido ao impacto da Covid-19 observado em empresas do setor nos EUA.
No país, grandes empresas como Cargill e Smithfield Foods tiveram que fechar
fábricas por causa de surtos da doença.
O CDC, agência que monitora
dados epidemiológicos nos EUA, informou que quase 5 mil funcionários de
frigoríficos haviam sido infectados até o final de maio no país, mas a ONG Food
& Environment Reporting Network estima que esse número, na verdade, pode
ter ultrapassado 17 mil trabalhadores e mais de 60 mortes.
No último domingo (21), a
China também suspendeu as importações de aves de uma das fábricas da Tyson
Foods devido aos casos de Covid-19 entre os funcionários. A Tyson, a maior
empresa de carne dos EUA em vendas, está analisando o relatório de suspensão
chinês, focado em uma fábrica de frango em Springdale, Arkansas.
No Brasil, a atividade entrou
no rol de serviços essenciais pelo decreto nacional assinado pelo presidente
Jair Bolsonaro, em março. Segundo o MPT, a recomendação pedia que as empresas
considerassem o isolamento de trabalhadores, quando possível para manter a
produção.
Além disso, o órgão orientava
os frigoríficos a adotar e ampliar as escalas de trabalho para reduzir fluxos e
o número de trabalhadores por turno. A reorganização dos horários de entrada e
saída dos funcionários também era uma instrução do órgão.
O MPT, no entanto, encontrou
relutância das empresas para efetivar as ações. “Em um primeiro momento,
tivemos uma resistência bem grande do setor justamente porque supunham que não
existiam casos ainda e que as medidas eram um tanto quanto exageradas e
inexequíveis”, lembra a procuradora. Ela diz que a dimensão que os casos
ganharam poderia ter sido evitada com busca ativa de casos pelas empresas e
afastamentos precoces. “Não tínhamos nenhuma planta ainda com surto, não
existia nenhuma dessas situações que hoje identificamos quando fizemos a
primeira recomendação.”
Para Priscila, era questão de
tempo até que os primeiros casos aparecessem. “Era uma bomba-relógio”, diz a
procuradora. “É um grande quantitativo de trabalhadores, que desempenham suas
atividades de forma muito próxima. E, fora da linha de produção, existem muitos
pontos de aglomeração que facilitam a dispersão da Covid-19”, completa. Além
disso, ela lista os ambientes refrigerados, pouco arejados e com baixa taxa de
renovação de ar como determinantes para a propagação do vírus.
Até o final de maio, o MPT
somava mais de 172 denúncias trabalhistas, em todo o Brasil, relativas a
empresas de “abate de reses” e “abate de suínos e aves, categoria em que se
encaixam os abatedouros. No Rio Grande do Sul, o MPT entrou com ações civis públicas
contra quatro plantas de frigoríficos. Foram interditadas duas unidades da JBS,
em Passo Fundo e Caxias do Sul, além dos dois frigoríficos epicentro dos casos
em Lajeado, o da BRF e o da Minuano. Em âmbito nacional, o órgão firmou Termos
de Ajuste de Conduta (TACs) com mais de 70 frigoríficos no país para a
readequação das condições de trabalho dos funcionários durante a pandemia.
Dez empresas que empregam,
juntas, cerca de 170 mil trabalhadores assinaram o compromisso, como BRF,
Marfrig e Aurora. A JBS, maior indústria de carnes do país, não aceitou pactuar
o acordo com o órgão.
A Agência Pública entrou em
contato com a JBS, que afirmou que a empresa adota “um rigoroso protocolo de
controle e prevenção da doença em suas unidades”, que foi definido de acordo
com os órgãos de saúde e com a consultoria de médicos especializados. “Com
essas medidas, a empresa está confiante em garantir o abastecimento e a oferta
de produtos da mais alta qualidade a seus clientes e consumidores no país e no
mundo”, diz a nota da assessoria de imprensa.
No Mato Grosso do Sul, como
mostrou reportagem da Pública, a contaminação de pelo menos 86 indígenas da
reserva Francisco Horta Barbosa, em Dourados, partiu de uma planta da JBS que
recebe trabalhadores de vários municípios da região. No Paraná e em Santa
Catarina, o Ministério Público Federal (MPF), em conjunto com o MPT, recomendou
que as empresas afastassem trabalhadores indígenas sem cortes nos salários.
Freio na produção
Entre os acordos realizados
com o MPT, está o plano de redução de atividades dos frigoríficos. Uma das
empresas que assinou esse termo foi a Agroaraçá, localizada em Nova Araçá,
pequena cidade de 4 mil habitantes na serra gaúcha, a 200 quilômetros de Porto
Alegre. No dia 29 de maio, a empresa suspendeu as atividades por três dias após
constatação de um surto de Covid-19 entre os trabalhadores: mais de 150
funcionários haviam sido diagnosticados.
Até o dia 19 de junho, a
cidade contabilizou 439 casos confirmados, além de 26 casos suspeitos. O
município registrou uma morte, de Lorimar Oliveira, gerente de produção do
frigorífico.
Depois do acordo, a fábrica
fez testagem em massa nos trabalhadores e detectou 447 casos do novo
coronavírus na empresa, 396 que já estavam imunes e 51 ativos e assintomáticos.
Os números de trabalhadores contaminados na empresa estão dissolvidos nos
boletins epidemiológicos dos municípios vizinhos. A auxiliar de produção Elena
Maria Bastiani, de 48 anos, trabalha há 15 anos no frigorífico e foi uma das
trabalhadoras afastadas.
Até o surgimento do primeiro
caso, ela conta que medidas de prevenção, como o distanciamento social, eram
tomadas – mas não foram suficientes para evitar o surto na empresa que emprega
1.600 mil funcionários. “A gente mantinha distância uns dos outros, nossa
temperatura era medida antes de entrar, a gente lavava as mãos. Mas o primeiro
caso que houve foi no dia 4 de maio e, a partir dali, só foi aumentando”,
lembra. Ela, que trabalha no departamento de corte e embalagem, estima que são
200 colegas na mesma sala. “É muita gente, um ambiente que não tem ventilação.
Acredito que seja por isso também que o vírus se espalhou por lá”, disse. “Não
houve rotatividade, todo mundo estava trabalhando normalmente, menos quem era
grupo de risco e grávidas.”
Dois dias após o exame, ela
começou a sentir os primeiros sintomas: “Eu estava espirrando muito e não
conseguia respirar pelo nariz. Também fiquei com dor de cabeça forte, eu achava
que ia surtar a qualquer momento”, lembra. Por conta da pandemia, Elena não vê
o filho de 11 anos há três meses, que aguarda o fim do isolamento social na
cidade de Montenegro, a 150 quilômetros de distância de Nova Araçá.
“Ele foi passar as férias na
casa da tia, em março. Mas, como começou o surto no frigorífico, achamos melhor
ele ficar lá, porque eu estava exposta”, explica a funcionária. “Eu chorava e
pensava que eu nunca mais fosse ver meu filho.” Após acordo com o MPT, o
Agroaraçá voltou a funcionar, operando com 40% do seu quadro de funcionários,
no início de junho.
No dia 19 de junho, os
ministérios da Agricultura, da Economia e da Saúde publicaram no Diário Oficial
da União uma portaria conjunta com as medidas destinadas à prevenção e ao
controle da Covid-19 nos frigoríficos. Mas a testagem em massa e a diminuição
do número de funcionários por turnos, que têm sido recomendadas pelo MPT,
ficaram de fora das obrigatoriedades das empresas.
Exame