Moeda única sem simetrias do Mercosul é convite ao naufrágio
Se vem mesmo o Sur, ou qualquer outro nome para a moeda comum do Mercosul, como desde ontem os eufóricos presidentes Lula e Alberto Fernández anunciaram, vale dizer desde já que não deveria ser prioridade.
Falta arcabouço técnico que a torne viável, tanto em relação a estrutura do bloco quanto à desenvoltura econômica dos dois principais países. Vamos ver, a seguir.
Na realidade, tal mecanismo favorece especificamente a Argentina, carente de reservas internacionais em moeda forte. Não é o caso do Brasil, com reservas aproximadas em torno de US$ 390 bilhões.
Além disso, será criado um mecanismo de financiamento às exportações brasileiras via BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para a Argentina. A ideia é transacionar em moedas locais para poupar moeda forte e preservar as reservas internacionais.
Em 2008, foi autorizada não compulsoriamente a utilização de moedas locais para as transações, com o acerto final das paridades para conversão em dólares, por parte dos Bancos Centrais.
No passado recente, tínhamos o Convênio de Créditos Recíprocos (CCR), que tinha por objetivo compensar as exportações e importações dos países membros da ALADI (Associação Latino-Americana de Integração), sendo que o saldo das operações deveria ser liquidado pelos Bancos Centrais.
O Banco Central do Brasil decidiu sair do CCR em 2019.
Uma moeda única desviará as oportunidades
Porque insistir nessa ideia fará com que nos desviássemos do foco de onde estão as grandes oportunidades para o Mercosul.
Explicou-se que a ideia não seria substituir as moedas nacionais dos países do Mercosul, mas formatar uma moeda única para as transações comerciais entre eles, sem depender do dólar.
Mas a polêmica já estava lançada.
A teoria tem seus méritos, tanto que o próprio ministro Fernando Haddad, que a princípio teria uma linha de pensamento mais desenvolvimentista, escreveu em 2022 um artigo defendendo a ideia.
Mas não foi o único, já que seu antecessor, Paulo Guedes, que sempre defendeu ideias liberais, também já havia feito a mesma sugestão, e até sugerido um nome para a moeda, peso–real.
Haverá necessidade de diversas regulamentações dos Bancos Centrais dos países para determinar a compulsoriedade da utilização.
Não será tão fácil que os exportadores e importadores sintam confiança na medida para utilizar.
Entretanto para exportações de manufaturados, pode ser que dê certo.
A grande dúvida virá do setor automotriz. Independentemente de quem propôs, entre teoria e prática vai uma grande distância.
O complexo, demorado e arriscado processo de instituir uma moeda única nos desviaria da verdadeira oportunidade para o Mercosul, que é se adequar a receber as cadeias de produção que estão sendo desglobalizadas e remontadas em processos de nacionalização e regionalização continental, dos quais já temos falado há pelo menos 2 anos.
Para se criar uma moeda única para o Mercosul, que seria utilizada por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, teríamos de passar antes por todas as etapas de uma integração econômica regional, que seriam:
Zona de livre comércio perfeita;
União aduaneira com a adoção integral da Tarifa Externa Comum;
Mercado comum, com livre circulação de pessoas e capitais;
Harmonização de políticas macroeconômicas; e
Integração total das cadeias produtivas.
A situação do Mercosul Hoje
Zona de Livre Comércio: não há no Mercosul uma Zona de Livre Comércio, com exceção do setor automotriz, regido por cotas, e o setor de açúcar, também administrado.
União aduaneira: em relação à União aduaneira, tem se várias perfurações da Tarifa Externa Comum, com excepcionalidades de regimes especiais, como por exemplo, lista de exceções, ex-tarifários, reduções do imposto de importação para a Argentina, Uruguai e Paraguai para compras de bens de capital e equipamentos de terceiros países, entre outras perfurações.
Política Comercial Comum: não há uma política comercial comum para terceiros países, nem no caso do setor do agribusiness, ponto forte do bloco, que será uma exceção nos processos de desglobalização econômica, e é uma oportunidade que todos os países da região vêm deixando passar há tempos.
Aliás, pouco se avançou nos aspectos institucionais, que fazem com que os países do Bloco considerem o Mercosul um ator a ser considerado em seus interesses, e instância mais relevante nos acordos comerciais.
Se por um lado, há negociações em andamento com Singapura, Coreia do Sul, Canadá, Líbano e Tunísia, pelo outro o acordo comercial com a Mercosul – União Europeia está paralisado e o Uruguai quer fazer um acordo comercial individual com a China e países do Sudeste Asiático, quebrando as regras do bloco e enfrentando fortes resistências do Brasil, Paraguai e Argentina, que, por sua vez, também já ignorou as regras do bloco quando lhe foi conveniente.
União Monetária: finalmente, não faz sentido falar em união monetária, como se chamaria quando vários países têm uma única moeda, quando a Argentina tem cerca de 14 tipos de câmbio para o dólar, instabilidade monetária e cambial, com reservas em moeda forte escassas, e inflação anual em 2022 projetada em 100%.
No caso brasileiro, há uma alta volatilidade cambial, e a inflação anual fechou ao redor de 6% de 6%, alta para os padrões desejados, mas controlada. Ao contrário do que ocorre com nosso vizinho.
Entretanto, mesmo que resolvêssemos todos esses problemas, o que seria uma condição
necessária para uma união monetária no Mercosul, talvez não seja suficiente para que a ideiaseja interessante para o Brasil, como explicaremos a seguir, fazendo uma comparação com a única união monetária conhecida, a criação da Zona do Euro, na União Europeia.
Brasil não está preparado para uma moeda única no Mercosul
Prever o futuro continua um ofício tão arriscado quanto sempre foi, mas se podemos aprender algo com a experiência passada da União Europeia é que o Brasil não está preparado para uma moeda única no Mercosul, e não tiramos essa afirmação de nenhum tipo de “complexa de vira lata”, ou coisa do tipo.
A União Europeia, que começou sua integração econômica com a Comunidade Econômica Europeia em 1957, assinou o Tratado de Maastricht para a criação da União Europeia 45 anos depois, em 2002, e levou mais 7 anos para a implantação do Euro, em 2009.
Foram anos para a harmonização macroeconômica, com metas de inflação e fiscais, de acordo com o Tratado, e mesmo assim, nem todos os países da União Europeia adotaram o Euro.
Dos 27 países, atualmente membros da União Europeia, visto que o Reino Unido saiu no célebre, ou infame, Brexit, sem jamais abrir mão da libra esterlina, apenas 20 países usam como moeda o euro.
Alemanha é o elo mais forte da corrente da UE
Apesar de toda a lição de casa feita para permitir a integração econômica e monetária, ela não foi indolor.
Mesmo tendo entre seus membros alguns dos países mais ricos do mundo, como Alemanha, França e Itália, manter uma moeda forte para todos os países que adotaram o euro, em certos momentos teve altos custos para todo os países membros, especialmente para a Alemanha, o mais rico e industrializado do bloco.
Como alguns devem se lembrar, menos de 10 anos depois que o economista-chefe da Goldman Sachs, Jim O’Neil cunhou o termo BRICS como o acrônimo que indicava Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul como economias emergentes e oportunidades de investimento, surgiu o termo PIIGS, que como você deve saber, significa “porco” em inglês, se referindo à performance econômica muito ruim de Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha.
Trocadilhos cruéis à parte, o fato é que a partir de 2010, todos esses países precisaram de socorro econômico, inclusive da União Europeia.
E a maior parte dessa conta coube justamente ao membro mais abonado da comunidade Europeia, a Alemanha.
O uso de uma moeda é um comportamento humano aprendido, que depende de percepção.
As pessoas acreditam que uma moeda que tem o valor impresso nela, e sabem que outros também acreditarão nisso, porque existem algo que garante isso.
O que garante o valor do euro é seu uso por economias como França e Alemanha, principalmente.
O euro permitiu que todo o continente europeu, incluindo os países mais pobres e instáveis, tivessem a mesma moeda que as potências econômicas.
Estas, por sua vez, faziam com que mercados aos quais já estavam integradas logisticamente, tivessem uma moeda forte o suficiente para consumirem suas manufaturas.
Quando a Crise dos PIIGS eclodiu, a Alemanha, e os demais países ricos e industrializados do bloco europeu, não tinham muita alternativa além do socorro financeiro.
Além de não interessar para eles que os mais frágeis quebrassem, se isso acontecesse, levariam junto as moedas que eles mesmos usavam. Não havia opção.
Transportando a história, e as situações pelo qual os países da Zona do Euro passaram, e atribuindo à maior economia da América Latina, o Brasil, o mesmo papel que a Alemanha tem na União Europeia, será que o Brasil, que apesar de uma situação fiscal melhor que a maioria de seus vizinhos, ainda luta para se manter equilibrado, teria condições de impor, ou pelo menos recomendar, um ajuste fiscal aos outros membros do Mercosul?
E caso isso acorresse, e mesmo assim houvesse percalços, o Brasil teria condições de socorrer financeiramente Argentina, Uruguai ou Paraguai, promovendo um resgate financeiro como o feito com a Grécia na década passada?
O que é preciso entender é que é preciso mais que a vontade política de governos para que uma moeda comece a ter valor em comércio internacional. Inclusive, é preciso mais do que uma economia poderosa, que nenhum dos países do Mercosul tem.
Para se ter uma ideia, com todo o poder econômico, e consequentemente político, da China, o Renminbi, a moeda chinesa, que nós erradamente chamamos de yuan, corresponde a apenas 6% das transações econômicas internacionais do mundo. 85% delas, por outro lado, acontecem em Dólar Americano.
Onde estão as oportunidades para o Mercosul?
Conforme falamos anteriormente, os descomunais esforços e recursos necessários para uma empreitada que nem sabemos se é possível, e cujo retorno, caso acontecesse, seria totalmente incerto, nos desviariam da grande oportunidade que se apresenta para o Brasil e para o Mercosul, que é a reversão da globalização econômica.
Durante a crise dos respiradores, no início de 2020, o mundo enxergou os riscos de concentrar a produção em um único lugar, por mais competitivo que ele seja.
Fábricas que antes estavam na China e outras partes da Ásia estão sendo movidas para outros países mais próximos dos centros consumidores, quando não para os próprios, mesmo que os custos de produção neles sejam mais altos, em nome da segurança logística.
Já tendo um arcabouço legal de integração, que sim, precisa ser aperfeiçoado, e alguma integração logística, que tem grandes possibilidades, inclusive se pensarmos em navegação de cabotagem, o Cone Sul é um forte candidato a concentrar grande parte da produção industrial da América do Sul.
A integração energética também é fundamental, principalmente a energia limpa.
Uma oportunidade e um alerta
Essas oportunidades criadas pela desglobalização econômica apareceram porque desde 2020 ocorreram dois fatos inesperados e imprevisíveis: a pandemia, e mais recentemente, a invasão russa na Ucrânia.
E, diz o ditado, que o ideograma chinês para crise é o mesmo que para oportunidade. E esse é um excelente exemplo.
Essa crise gerou oportunidades para o Mercosul.
Mas, cabe o alerta de que as oportunidades não ficam esperando eternamente para serem aproveitadas.
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