segunda-feira, 12 de agosto de 2024

MORRE O EX-MINISTRO DE VÁRIOS GOVERNOS MILITARES ANTONIO DELFIM NETO, AOS 96 ANOS.

Ex-ministro da Fazenda, Delfim Netto — Foto: Edilson Dantas

Delfim Netto, um dos economistas mais poderosos do País e também uma das figuras mais complexas da história brasileira, morreu na madrugada desta segunda-feira, 12, em São Paulo, aos 96 anos. O ex-ministro da Fazenda e ex-deputado federal estava internado desde 5 de agosto no Hospital Israelita Albert Einstein em decorrências de complicações no seu quadro de saúde.

Ele deixa filha e neto. Não haverá velório aberto e seu enterro será restrito à família.

Delfim foi ministro do regime militar nos governos dos generais Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici e João Baptista Figueiredo e deputado federal, mas também um dos principais conselheiros de presidentes petistas e de empresários.

Era ele que estava sob o comando da economia, entre 1967 e 1973, anos mais violentos da ditadura, quando o Produto Interno Bruto cresceu 85% e a renda per capita dos brasileiros, 62%. Delfim personificou o milagre brasileiro: em quatro anos, saiu 18 vezes na capa da revista Veja e era a figura do governo mais presente nas páginas dos jornais. Nenhum outro ministro concentrou tanto poder como ele.

Delfim não só testemunhou, como influenciou alguns dos momentos mais marcantes da história do Brasil. Estava presente (e votou a favor), no dia 13 de dezembro de 1968, quando o general Costa e Silva baixou o Ato Institucional número 5, decreto que acabou com liberdades políticas e deu poder de exceção a governantes para punir arbitrariamente os inimigos do regime. Foi protagonista do milagre econômico, que culminou mais tarde na crise do endividamento externo brasileiro. Viu a hiperinflação, a redemocratização, participou da Constituinte, criticou o Plano Real, ajudou o PT a chegar ao poder.

Aos 90 e poucos anos de idade, Delfim continuava contribuindo com o debate econômico e não parou de se atualizar: seguia estudando e produzindo artigos acadêmicos, em sua quinquagenária máquina de escrever Olympia. Com mais de 100 quilos em 1,60 metro de altura, o Gordo, como era chamado, tinha dificuldade para caminhar, mas não para debater economia.

“Delfim conversava muito, cuidava dos argumentos para garantir a civilidade, mas sempre encontrou formas sutis de entrever suas críticas”, diz o economista Marcos Lisboa. “Suas histórias eram permeadas de observações que despertavam a graça e a simpatia dos ouvintes, em meio a críticas que despontavam ocasionalmente, desde que o ouvido fosse apurado.”

O ex-ministro não veio da elite. Neto de imigrantes italianos, nasceu e cresceu no bairro do Cambuci, em São Paulo. Sua mãe, Maria, era costureira e ficou viúva quando o filho tinha nove anos.

O pai, José, trabalhava na empresa de transportes da prefeitura de São Paulo (CMTC). Mas era o avô paterno – o Antônio que lhe deu o nome – sua grande referência: o italiano que veio para o Brasil nos anos 1880 para trabalhar na lavoura de café acabou fazendo a vida na capital, calçando ruas a serviço da prefeitura. De calceteiro virou dono de uma mina de pedras e passou a ser fornecedor do poder público – história que Delfim adorava contar.

Uspiano ilustre

Estudante de escola pública, com curso técnico em contabilidade, o ex-ministro começou sua formação intelectual aos 14 anos, quando trabalhava como office-boy na Gessy Lever. Inspirado por um funcionário, começou a ler os socialistas fabianos, representantes de um movimento britânico que defendia uma passagem gradual para o socialismo, sem luta de classes – corrente que mais tarde ele criticaria. Está aí a origem do nome de sua única filha, Fabiana.

Embora sonhasse em ser engenheiro, Delfim precisava de um curso que lhe permitisse trabalhar meio período – condição que o fez cursar economia na USP e prestar concurso público para o Departamento de Estradas de Rodagem (DER).

Foi estudando sozinho que conseguiu entrar na universidade. Seu gosto por garimpar livros em sebos e livrarias o fez montar uma biblioteca com quase 300 mil títulos, parte deles doados para a USP.

Na universidade paulista, onde foi aluno e professor, participou de um movimento que revolucionou o pensamento econômico no Brasil, aos moldes do que já se fazia fora do País: a narrativa começava a dar lugar ao uso de dados e à econometria.

Sua tese de doutorado sobre “O Problema do Café no Brasil” virou livro e é uma referência até hoje. Delfim desmontou os argumentos que sustentavam a intervenção brasileira no mercado mundial do café e a ideia de que os cafeicultores precisavam ser protegidos.

Nessa época, ele já prestava assessoria econômica para a Associação Comercial de São Paulo e mantinha uma forte relação com o empresariado paulista. Depois que os militares tomaram o poder, Delfim Netto se articulou para influenciar os rumos da economia, tentando convencer os ministros de que não era preciso fazer um ajuste fiscal tão forte, mas sim impulsionar a atividade econômica. O PIB, depois de crescer mais de 7% ao ano com Jânio Quadros, estava patinando com os militares.

Sua escalada ao poder começou no governo de Costa e Silva. Quando se preparava para assumir a Presidência, o general promoveu uma série de seminários em um apartamento de Copacabana para ouvir possíveis integrantes de seu futuro governo.

O professor da USP, Delfim Netto, estava entre os escolhidos. Com gráficos desenhados em cartolinas, ele falou sobre agricultura e ganhou a simpatia do general. Tempos depois, Delfim foi chamado para uma reunião no Rio e, quando saiu, disse a um de seus pupilos, o economista Carlos Alberto de Andrade Pinto: “Se prepare que agora nós vamos mandar. Fica quieto, não fala nada, mas agora nós vamos mandar.” O episódio foi relatado pelo jornalista Rafael Cariello, em 2014, na revista Piauí.

Aos 39 anos, quando Delfim Netto chegou ao Rio para assumir o Ministério da Fazenda, a elite carioca apostava que ele não duraria nem um ano no cargo. “No Rio, era o seguinte: chegou esse gordo, italiano e vesgo. Nós vamos matá-lo em seis meses, tá certo? E além de tudo tem uns animais estranhos com ele, uns japoneses”, contou certa vez.

Não demorou para que os “animais estranhos” fossem apelidados de Delfim Boys: eram duas dezenas de colaboradores, muitos deles ex-alunos, que acompanharam o ministro na capital federal. Para entrar no grupo, como na máfia, havia um requisito inegociável: lealdade. Seus pupilos podiam errar o quanto quisessem, desde que fossem leais.

Com centenas de pessoas em tudo quanto era lugar, Delfim Netto multiplicou seu poder de informação e sua influência no governo. “Raras vezes vi alguém com essas duas características que o Delfim tem: a curiosidade intelectual e a ambição pelo poder”, disse certa vez o economista Eduardo Giannetti da Fonseca.

O ex-ministro nunca se vinculou a uma escola de pensamento econômico. Dizia que “não existe mercado sem Estado e não existe desenvolvimento sem mercado.” Defendia o caminho do meio: “Nem considerar a teoria econômica como uma religião, da qual o economista é portador, divulgador e defensor; nem achar que o Estado é onisciente e, portanto, não pode ser nem onipresente nem onipotente”.

‘Todo poderoso’

Onipotente era um adjetivo que cabia bem a Delfim enquanto ele esteve na Fazenda. Ao assumir o comando, para reverter o baixo crescimento que herdou de seus antecessores (os ministros da Fazenda, Octávio Gouvêa de Bulhões, e do Planejamento, Roberto Campos), Delfim Netto ampliou subsídios e adotou uma política agressiva de estímulo às exportações e ao crédito. Os bancos estatais, controlados pelo ministro, injetavam recursos na economia e o Orçamento estava sob seu controle. Os ministros que bateram de frente com o Gordo caíram. Empresários foram chamados por ele a financiar o combate à subversão e compareceram.

Na reunião que instituiu o AI-5, sugeriu que o decreto não bastava e que o presidente deveria ter ainda mais poder. Em depoimento à Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo, em junho de 2013, Delfim afirmou que não se arrependia de ter sido um dos elaboradores do AI-5. “Se as condições fossem as mesmas e o futuro não fosse opaco, eu repetiria. Eu não só assinei o AI-5 como assinei a Constituição de 1988.”

Sob o comando de Delfim, o país investiu em grandes obras de infraestrutura, como a Ponte Rio-Niterói e a nunca terminada rodovia Transamazônica. Para reduzir a inflação, ele manipulou os preços dos alimentos: sabia exatamente quais gêneros entravam no cálculo do índice feito pela Fundação Getúlio Vargas, apenas no Rio, e dava um jeito de aumentar a oferta desses produtos na cidade, derrubando os preços.

Depois de mandar e desmandar na economia durante os governos de Costa e Silva e Médici, Delfim tinha pretensões políticas: queria ser governador de São Paulo em 1974 e presidente da república em 79. Mas o quarto presidente do regime militar cortou-lhe as asas. Ernesto Geisel, que era presidente da Petrobrás no governo Médici, sempre implicou com Delfim.

O clima entre eles ficou pior entre 73 e 74, quando o preço do barril de petróleo quadruplicou. O chefe da petroleira, já escolhido como próximo presidente militar, queria antecipar o aumento do combustível, mas Delfim negou o reajuste. “Quem vai aumentar é você”, disse o economista. Indícios de corrupção também ajudaram a derrubar o ministro da Fazenda e sua equipe. Com o objetivo de barrar as pretensões políticas de Delfim, Geisel o nomeou embaixador brasileiro em Paris.

Três anos depois, já no governo de Figueiredo, Delfim Netto volta ao Brasil e, apoiado por empresários, assume um dos ministérios – desta vez o da Agricultura. Nos meses seguintes, ele derrubaria os ministros da Fazenda Karlos Rischbieter, e do Planejamento, Mário Henrique Simonsen. E voltaria a assumir o controle da economia, não mais para pilotar o milagre, mas para gerir uma crise.

Depois do choque do petróleo, o governo e as empresas tomaram empréstimos a um custo baixo no exterior. Em 1981, quando os EUA elevaram a taxa de juros, a dívida brasileira explodiu e o País quebrou.

No ano seguinte, teve de recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Delfim Netto ficaria no comando da economia, como ministro do Planejamento, até o fim do regime militar. Ele entregou o País com uma inflação anual de 235% e uma dívida quase quatro vezes maior do que a do início da ditadura. A inflação só voltaria a ficar sob controle depois do Plano Real.

Ao deixar o governo Figueiredo, mesmo em meio a uma série de denúncias de irregularidades, como a cobrança de propina para facilitar negócios de empresas francesas no Brasil, Delfim Netto se candidatou a deputado federal pelo PDS (antigo Arena) e voltou para Brasília – onde ficaria por cinco mandatos até perder as eleições em 2006. Ele dava risada ao lembrar que, nessa época, era o terror da esquerda brasileira. “O pessoal do PT saía do elevador quando me encontrava, achando que aquilo ia me incomodar.”

Como deputado federal, participou da constituinte e foi um crítico das políticas econômicas de Sarney, Fernando Collor de Mello, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. Quando o Plano Real foi anunciado, em fevereiro de 1994, considerou-o “eleitoreiro” e defendeu uma política de “privatizações selvagens” para controle da inflação – mais tarde ele mudaria de ideia em relação ao plano, mas continuaria sendo oposição a FHC, a quem chamava de “exterminador do presente”. Dizia que os juros altos eram a “tragédia do trabalhador desempregado e a alegria do banqueiro endinheirado” – um discurso que começou a agradar até a seus adversários históricos da esquerda.

Metamorfose ambulante

Nas eleições de 98, já como membro do PPB de Paulo Maluf, disse que Lula não devia ser “satanizado”. No pleito seguinte, em 2002, elogiou a Carta ao Povo Brasileiro, mas só quando o sindicalista passou para o segundo turno com José Serra, Delfim Netto manifestou seu apoio, em uma entrevista publicada no site de Lula.

No governo petista, teve um assento no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, indicou pessoas próximas para cargos em estatais, foi conselheiro da Empresa Brasil de Comunicação e cogitado diversas vezes para ser ministro. Em 2009, declarou que “Lula salvou o capitalismo brasileiro”.

O ex-ministro apoiou a candidatura de Dilma Rousseff e chegou a ser conselheiro da petista. Os dois romperam em 2012, contava Delfim, depois que o governo forçou uma redução no preço da energia elétrica, o que considerava um dos grandes equívocos daquela gestão.

Tão próximo dos petistas, Delfim não escapou da Operação Lava Jato. Em 2018, foi citado por suspeita de fraude na licitação da usina de Belo Monte, usando sua influência para beneficiar o consórcio vencedor. Sua defesa contestou a acusação, dizendo que os recursos apontados como propina eram a remuneração por consultoria prestada a empreiteiras.

Quando viu que o governo ia afundar, Delfim Netto mudou de barco. Meses antes de Dilma ser afastada do cargo, o economista já se encontrava regularmente com o vice Michel Temer, que assumiria a Presidência após o impeachment.

Com Bolsonaro no poder, voltou seus elogios para a política liberal de Paulo Guedes. Dizia que Guedes era o lado iluminado do governo.

Ao tentar definir Delfim, o pesquisador da FGV Samuel Pessôa disse certa vez que o ex-ministro era “a figura mais complexa da segunda metade do século XX no Brasil” e resumiu: “Ele compactuou com o regime militar na parte mais dura da ditadura, no que houve de mais violento e condenável daquele período negro da nossa história, mas é um economista espetacular, dos melhores da nossa história.”

Fonte:

MSN

sexta-feira, 10 de maio de 2024

O MILAGRE ECONÔMICO BRASILEIRO E A FALÊNCIA DO ESTADO BRASILEIRO. UMA HERANÇA DOS GOVERNOS MILITARES



O VÍDEO MOSTRA UM BOM RESUMO DO QUE FOI O MILAGRE ECONÔMICO BRASILEIRO NO PERÍODO DOS GOVERNOS MILITARES. SUAS ORIGENS, VIVÊNCIAS E FALÊNCIAS.





Policial na ditadura
Aspecto econômico do regime militar foi marcado por alto investimento público e forte endividamento
ARQUIVO NACIONAL
O período iniciado em 1968 foi marcado pelo fechamento do Congresso Nacional, pela tortura de adversários políticos e pela morte e desaparecimento de mais de 400 pessoas, como indica o relatório da Comissão Nacional da Verdade.
Ainda assim, não é incomum que o período do regime militar no Brasil, entre 1964 e 1985, seja lembrado por alguns com certa nostalgia como um tempo marcado por um forte crescimento da economia, que ficou conhecido "milagre econômico". A economia brasileira nunca cresceu tanto - antes ou depois. A taxa média de crescimento nesse período girava em torno de 10% por ano.
Mas especialistas notam que o regime militar deixou para o país uma herança maldita para a economia, como o agravamento de alguns dos problemas que ainda marcam o noticiário econômico brasileiro, como o endividamento do setor público e o aumento da desigualdade social.
"O governo militar, quando assume em 1964, enfrenta um período de bastante desorganização da economia, com desequilíbrio fiscal, inflação alta e desemprego. Havia um desgaste muito grande do modelo econômico anterior, com o fracasso do Plano Trienal (para retormar o crescimento econômico). Eles conseguiram modernizar a economia, mas isso teve um alto preço, que acabou sendo pago após a redemocratização, como hiperfinflação e dívida externa estratosférica", diz Vinicius Müller, professor de história econômica do Insper, à BBC News Brasil.
Mesmo serviços públicos, como a educação eram restritos e sofreram uma clara erosão de investimentos do Estado. O desenvolvimento da indústria, por outro lado, se deu à custa de muito endividamento público. A dívida externa brasileira cresceu em mais de 30 vezes. Se o PIB cresceu como nunca, a repressão limitou o poder de barganha dos sindicatos, e o salário dos trabalhadores amargou duas décadas de reajustes abaixo da inflação.
A BBC News Brasil analisou os dados do período e entrevistou historiadores, economistas e sociólogos em busca de um raio-x do legado socioeconômico do regime militar. Veja os principais pontos.

Havia menos corrupção?

Pouco se ouve falar em corrupção durante a ditadura. Mas isso quer dizer que ela não existiu?
O ambiente do regime militar era "ideal para práticas corruptas", segundo o professor Pedro Henrique Pedreira Campos, do Departamento de História e Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor do livro Estranhas Catedrais: As Empreiteiras Brasileiras e a Ditadura Civil-militar, 1964-1988, que analisa mais profundamente essa relação.
"Os mecanismos de fiscalização eram inexistentes ou estavam amordaçados: a imprensa, a oposição política, o Parlamento. As próprias instituições do Estado, como Polícia Federal, Ministério Público e Judiciário, sofreram forte limitação na sua atuação naquele período", diz Campos.
Crescimento do PIB em % (1964-1985)
O Brasil nunca cresceu tanto quanto no governo militar | Crédito: Banco Mundial com elaboração BBC
Campos lembra, ainda, que "mesmo com todo esse amordaçamento dos mecanismos de fiscalização, alguns casos vieram à tona, principalmente no período da transição política, e foram denunciados publicamente".
É o caso, por exemplo, do Relatório Saraiva, que envolve a suposta cobrança de propina por parte de Delfim Netto, então ministro da Fazenda, em obras de engenharia e financiamento para equipamentos de usinas hidrelétricas. Delfim sempre negou a acusação.
"O próprio SNI (Serviço Nacional de Informações), o órgão de espionagem da ditadura, flagrou alguns ministros, empresários e agentes públicos cobrando propina e recebendo recursos ilegais por parte de empresas para ter favorecimentos", diz.
"Não é porque tínhamos menos notícia de corrupção que havia menos (atos de corrupção). Pelo contrário, tudo aponta que a corrupção era deliberada. O que a gente conhece e que veio a público provavelmente é a ponta do iceberg das irregularidades que foram cometidas naquele período. É uma pena que exista um desconhecimento de grande parte da população em relação a isso", conclui Campos.

'Crescimento chinês' e Estado na infraestrutura

De fato, o PIB brasileiro (Produto Interno Bruto, ou a soma de todas as riquezas produzidas) cresceu muito durante o governo militar. No início do regime, o crescimento foi baixo por conta das medidas tomadas para conter a inflação, que chegava a quase 100% ao ano.
Mas, a partir de 1968, a economia deslanchou. Inaugurava-se um período de cinco anos que ficou conhecido como "milagre econômico", quando o país cresceu a taxas elevadas e sem precedentes.
Em 1973, no auge do "milagre", o PIB cresceu 14%.
Imagine se toda essa riqueza acumulada fosse dividida igualmente por toda a população brasileira. É o chamado PIB per capita, que não considera a desigualdade, mas dá uma primeira ideia da evolução no período. Foi de US$ 261 em 1964 para US$ 1.643 em 1985.
Em 1964, um brasileiro ganhava, em média, o equivalente a 17% da renda recebida por um típico cidadão americano. Já em 1978, a renda média do brasileiro passou a corresponder a 28% a do americano. O problema era que nem todos recebiam igual fatia do bolo.
"Os militares alcançaram resultados bem positivos do ponto de vista econômico na primeira metade do regime: conseguiram controlar a inflação (em um primeiro momento), aumentaram a produtividade da economia, modernizaram a máquina pública e o parque industrial. Além disso, fortaleceram o Estado, que passou a ter um protagonismo significativo nos investimentos em infraestrutura", diz Guilherme Grandi, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP (FEA/USP).
A taxa de investimento público em relação ao PIB passou de quase 15% em 1964 para 23,3% em 1975.
"Mas como isso foi feito? Foi feito em um ambiente autoritário, à custa de muitas vidas", ressalva.
Protesto contra ditadura
ARQUIVO NACIONAL
Ditadura militar achatou salário dos trabalhadores

Emprego, obras públicas e financiamento internacional

Com esse crescimento, também vieram mais empregos, especialmente na indústria.
Em 1965, o setor empregava 2 milhões de pessoas. Vinte anos depois, em 1985, 3,5 milhões.
A inflação também caiu. Foi de 92% em 1964 para 15,6% em 1973.
Mas como isso foi possível? Houve uma combinação de fatores.
Os militares incentivaram a entrada do capital estrangeiro, estimularam exportações e implementaram medidas para proteger o investimento financeiro, como a correção monetária. Foram feitas reformas fiscais, tributárias e financeiras.
"A criação do Banco Central (1964), que administra nossa política monetária, data desse período", lembra Grandi, da Faculdade de Economia e Administração da USP (FEA/USP).
O governo também apostou em grandes obras. Vieram a Ponte Rio-Niterói, a mega usina de Itaipu, usinas nucleares de Angra, polos petroquímicos e Rodovia Transamazônica (até hoje não concluída).
Mas grande parte desse "milagre" só foi possível graças ao dinheiro internacional. Era uma época de crédito farto no exterior. O capital estrangeiro chegou ao Brasil tanto pelas chamadas multinacionais, que encontraram no nosso país um ambiente mais favorável, quanto por empréstimos tomados de instituições internacionais.

Ditadura militar
Militares modernizaram economia, mas a que custo? | Crédito: Arquivo Nacional
Salário mínimo real
No início da ditadura, a inflação foi controlada, mas às custas das classes mais baixas, os trabalhadores | Crédito: Ipeadata com elaboração @brasilemdados

Arrocho salarial e enfraquecimento dos sindicatos

Mas a conta do milagre não saiu nada barata. No início da ditadura, a inflação foi controlada, mas às custas das classes mais baixas, dos trabalhadores. Os salários foram achatados, já que foi mudada a fórmula que reajustava os salários pela inflação.
No governo militar, os trabalhadores tiveram aumentos salariais que eram insuficientes para recompor as perdas causadas pela elevação dos preços, reduzindo o poder de compra.
Entre 1964 e 1985, o salário mínimo caiu 50% em valores reais, ou seja, já ajustados pela inflação. Foram precisos 30 anos para recuperar o poder salarial dos mais pobres.
Esse arrocho salarial aconteceu em parte como resultado da intervenção dos militares sobre os sindicatos, o que diminuiu o poder dos movimentos e de negociação dos operários. Muitas dessas associações foram desmanteladas. Vários dirigentes sindicais foram presos ou substituídos por simpatizantes do regime.
O achatamento dos salários diminuiu o custo de mão-de-obra. Além disso, foi reduzida a alíquota máxima do Imposto de Renda, beneficiando os mais ricos, e concedidas várias isenções fiscais ao empresariado.
Foi criada a chamada correção monetária, um instrumento que protegia os investimentos da inflação e favoreceu mais quem tinha dinheiro para investir no mercado financeiro.
"Os trabalhadores foram os grupos mais fragilizados para disputar politicamente esses ganhos. Houve uma resposta muito agressiva contra eles", diz Müller, do Insper.
Concentração de renda
Desigualdade cresceu nas duas ditaduras | Crédito: Souza (2018) com elaboração @brasilemdados

Riqueza na mão de poucos

Na visão dos militares, era "preciso fazer o bolo crescer para depois reparti-lo". A frase, que se tornou célebre, foi dita por Delfim Netto, ministro da Fazenda de 1967 a 1974 e considerado o "pai" do milagre econômico. Não era a única teoria econômica que embasava o desenvolvimento em diferentes partes do mundo, mas foi a que prevaleceu no país.
As medidas implementadas, no entanto, acabaram também acentuando a desigualdade social de uma forma nunca vista, aumentando enormemente a concentração de riqueza.
Em 1964, o 1% mais rico da população detinha entre 15-20% de toda a renda do país. No fim da ditadura, passou a controlar quase 30%, como mostra um estudo conduzido por Pedro Ferreira de Souza, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da UnB.
Souza usou dados do Imposto de Renda, seguindo a mesma metodologia do economista francês Thomas Piketty, conhecido por ampliar as discussões sobre desigualdade social no mundo com seu livro O Capital do Século 21 (2014).
"Meu estudo mostrou que a desigualdade não foi consequência do milagre econômico, mas se acentuou antes desse período, com as decisões do governo militar que jogou a conta do ajuste no colo dos trabalhadores", diz Souza à BBC News Brasil.
O especialista lembra ainda que os militares acabaram com a estabilidade após dez anos de serviço, regra que valia no setor privado. Em contrapartida, criaram o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
"O governo arranjou um motivo político para acabar com a estabilidade e criou um mecanismo de poupança forçada para subsidiar empréstimos para financiar setores escolhidos. Ficou mais barato para as empresas demitirem. Ou seja, antes do reajuste anual, vários funcionários eram demitidos e recontratados logo depois. E a rede de proteção social do Brasil daquela época era quase nula", explica Souza.

O choque do petróleo de 1973

A trajetória de crescimento do PIB do Brasil começou a mudar em 1973, quando o Brasil e o mundo se surpreenderam com o primeiro choque do petróleo. Os países árabes exportadores de petróleo acertaram um embargo direcionado às nações que eram vistas como apoiadoras de Israel.
Como consequência imediata, o preço do barril de petróleo quadruplicou, afetando países importadores, como o Brasil. O crédito, que antes era farto, ficou de repente escasso. A economia brasileira, tão dependente de empréstimo estrangeiro, passou a enfrentar dificuldade. A rolagem da dívida externa teve de ser feita a juros mais elevados.
Lembram-se do crescimento de 14% em 1973? Ele caiu para 9% no ano seguinte e 5,2% em 1975.
Mas os militares decidiram não abrir mão do modelo econômico. Eles defendiam que o país deveria continuar crescendo a qualquer custo.
A opção foi continuar se endividando. Não esperavam, porém, uma nova piora do quadro externo.
Em 1979, houve uma segunda crise do petróleo. O Irã, então segundo maior produtor mundial, cortou a venda e a distribuição da matéria-prima, devido à Revolução Islâmica liderada pelo aiatolá Khomeini. O preço médio do barril explodiu. Mais um golpe à economia brasileira.
Mudança de rumo? Não, o Brasil decidiu continuar a se endividar.
Jovens cursando o Ensino Médio
Mais estudantes passaram a frequentar Ensino Médio com democracia | Crédito: IBGE com elaboração @brasilemdados

Menos dinheiro para a educação

Você já ouviu falar que, antigamente, a escola pública época era de boa qualidade e só quem estudava em colégios particulares era quem não fosse capaz de acompanhar a rigidez da escola pública?
O que muitos não sabem é que o processo de deterioração do ensino público ganhou força justamente no regime militar.
De fato, os governantes do período conseguiram reduzir a taxa de analfabetismo e estenderam a obrigatoriedade da educação básica. Segundo censos do IBGE, a taxa de analfabetismo de pessoas com 15 anos ou mais caiu de 33,6% em 1970 para 20% em 1991.
Também houve um foco importante na pós-graduação - especialmente na área de ciência e tecnologia.
No entanto, a ampliação do ensino não foi acompanhada de um aumento dos investimentos em educação. A verba, por outro lado, caiu.

Evolução do número total de matrículas em cursos presenciais de gradução
Entre 1980 e 2016, a população brasileira cresceu 1,7 vezes. Nesse mesmo período, número de matrículas no ensino superior público e privado cresceu 4,75 vezes | Crédito: @brasilemdados

A Constituição de 1967, aprovada durante a ditadura, trouxe duas alterações que mudariam o rumo da política educacional brasileira.
Primeiro, desobrigou o investimento público mínimo no setor.
No governo anterior, de João Goulart, a legislação previa que a União tinha de investir pelo menos 12% do PIB em educação. Além disso, obrigava Estados e municípios a alocarem 20% do orçamento na área de educação.
Em 1970, esse percentual foi para 7,6% do PIB, caiu para 4,31% em 1975, se recuperou um pouco e atingiu 5% em 1978.
Segundo, os militares abriram o ensino para a iniciativa privada, principalmente no ensino superior.
"O regime militar relativizou o princípio da gratuidade do ensino. O significativo aumento da participação privada na oferta de ensino, principalmente em nível superior, foi possível pelo incentivo governamental assumido deliberadamente como política educacional", diz à BBC News Brasil Dermeval Saviani, professor emérito da Unicamp e estudioso do tema.
Dados compilados por ele mostram que, de fato, ocorreu no período uma grande expansão do ensino superior. Entre 1964 e 1973, enquanto o ensino primário cresceu 70,3%, o ginasial, 332%, o colegial, 391%; o ensino superior foi muito além, tendo crescido no mesmo período 744,7%.
"E o grande peso nessa expansão se deveu à iniciativa privada: entre 1968 e 1976, o número de instituições públicas de ensino superior passou de 129 para 222, enquanto as instituições privadas saltaram de 243 para 663", explica Saviani.
Os militares também estenderam a educação básica obrigatória de quatro para oito anos.
"A mudança foi positiva. Mas não foi acompanhada de um crescimento de verbas em igual proporção", afirma o pesquisador.
Como resultado, não havia professor para todo mundo e a formação de novos docentes ficou prejudicada. Os salários e as condições de trabalho se deterioraram. O magistério deixou de ser uma profissão cobiçada pela classe média. Foram contratados os chamados professores leigos (sem qualificação pedagógica) para atender a demanda.
No Nordeste, por exemplo, 36% do quadro de docentes tinham apenas o 1º grau completo.
Tudo isso acabou por sucatear as escolas públicas.
Assim, os filhos da classe média que antes estavam matriculados nas escolas públicas passaram a frequentar colégios particulares. Os colégios públicos ficaram voltados aos mais pobres e esquecidos pelo governo.
Especialistas em educação tendem a atribuir a piora em serviços públicos em várias partes do mundo a medidas que incentivam a migração da classe média para a rede privada, deixando a rede pública desprovida da pressão política por melhorias tradicionalmente feita pela classe média escolarizada e ciente de seus direitos.
População urbana no Brasil
Exôdo rural foi foi mal planejado e nunca pôde ser revertido
Expectativa de vida ao nascer no Brasil 1964-1985
Expectativa de vida subiu de 56,3 anos para 63,5 anos no mesmo período

Queda na mortalidade infantil e saúde privada

Na área da saúde, houve avanços. A mortalidade infantil caiu pela metade de 1964 a 1985, e a expectativa de vida subiu de 56,3 anos para 63,5 anos no mesmo período.
Mas apesar do progresso em alguns indicadores, especialistas apontam que o regime militar "privatizou a saúde".
O Estado passou a diminuir sua participação no atendimento à população e foi substituído aos poucos pela rede privada.
De 1964 até 1974, o número de hospitais com fins lucrativos foi de 944 para 2.121.
Já o êxodo rural, a saída do campo rumo às cidades, foi mal planejado e nunca pôde ser revertido. As cidades brasileiras, despreparadas para o imenso contigente de pessoas que chegavam do interior, ficaram inchadas. Sem uma política habitacional efetiva, comunidades pobres, como favelas, se multiplicaram sem acesso a infraestrutura e saneamento básico.
Dívida externa brasileira em US$ (1970-1985) | Crédito: Banco Mundial com elaboração BBC
Dívida externa brasileira em US$ (1970-1985) | Crédito: Banco Mundial com elaboração BBC

Ganhos que não se sustentaram

Voltando à economia, o modelo adotado pelo regime militar se mostrou um "castelo de areia", segundo especialistas entrevistados pela BBC News Brasil.
Inflação anual
Inflação, que foi controlada de fato no início do regime, explodiu na segunda metade dele | Crédito: Banco Mundial com elaboração BBC
A inflação, que foi controlada no início, explodiu na segunda metade do regime. Em 1985, o índice anual já batia 231%. Quatro anos depois, durante o governo Sarney, eleito indiretamente pelo Congresso, a inflação chegou a quase 2.000% em 12 meses.
O endividamento subiu de 15,7% do PIB em 1964 para 54% do PIB quando os militares deixaram o poder, em 1984.
A dívida externa cresceu 30 vezes. Passou de US$ 3,4 bilhões em 1964 para mais de US$ 100 bilhões em 1985.
E ainda que a renda média tenha avançado, o salto brasileiro foi muito inferior ao da Coreia do Sul, por exemplo, cuja trajetória é frequentemente comparada à do Brasil.
Em 1964, o PIB per capita da Coreia do Sul era de US$ 123,59, a metade do brasileiro. Em 1985, quando a ditadura militar brasileira acabou, já era 50% maior do que o nosso (US$ 2.457,33).
Evolução do PIB per capita do Brasil e da Coreia do Sul entre 1964 e 1985
Evolução do PIB per capita do Brasil e da Coreia do Sul entre 1964 e 1985 | Crédito: Banco Mundial com elaboração BBC

O dia em que o país "faliu"

Em 1982, portanto ainda no regime militar, o Brasil quebrou. Começava a crise da dívida, no que se convencionou chamar de "década perdida", que pôs fim ao modelo de forte crescimento do país, sustentado no endividamento externo e políticas desenvolvimentistas como a substituição de importações (relançada posteriormente no governo Lula).
Cinco anos depois, o país declarou a moratória: o presidente José Sarney anunciou a suspensão do pagamento dos juros da dívida externa por tempo indeterminado. Não tínhamos mais dinheiro e a inflação estava nas alturas.
Nesse cenário, os militares se despediram do comando. Basicamente, deixaram de presente para a democracia uma conta bem alta, o que se convencionou chamar de "herança maldita".
"As reformas feitas pelos militares foram feitas sem o contraditório da oposição. Foram medidas polêmicas, que implicaram em vencedores e perdedores. Não houve discussão porque o regime era de exceção", diz à BBC News Brasil Claudio Hamilton dos Santos, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Vale lembrar que naquela época só havia dois partidos - MDB (oposição) e Arena (governista). Vários opositores do regime foram presos ou exilados.


NEUROCIÊNCIAS: O PERIGO DAS RECEITAS PRONTAS NA APRENDIZAGEM

O discurso das neurociências como uma panaceia para os problemas em sala de aula com seu caráter sedutor acaba fazendo com que a divulgação científica séria fique deixada de lado.

O processo de aprendizagem é complexo, mas o excesso de cobrança por resultados e a pressa em obtê-los fazem com que muitos educadores e educadoras acabem recorrendo a receitas prontas, várias delas supostamente baseadas nas neurociências. Sem conhecimentos prévios na área e com pouco tempo para se aprofundar, profissionais da educação acabam sendo vítimas em potencial para os neuromitos, um antigo tipo de fake news sobre o cérebro.  

Entre as ideias erradas sobre o funcionamento cerebral que circulam na educação, uma das mais persistentes é o mito dos diferentes ‘estilos de aprendizagem’ — visual, auditivo, sinestésico. Na realidade, quanto mais estímulos, e mais variados, melhor para todo mundo.   

E não faltam cursos rápidos e sem base teórica, além de influenciadores de redes sociais com pouco ou falta de conhecimento. “Vende-se uma ideia de que a aprendizagem é um processo só do cérebro, e dentro dele estará tudo resolvido. Isso é no fundo uma ingenuidade, uma falha de perceber a complexidade do que é aprender”, afirma o neurocientista Fernando Louzada, pesquisador do departamento de fisiologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). 

Esse movimento não é recente. Louzada conta que há 20 anos se preocupa com a questão. “Comprei meia dúzia de livros sobre o brain based learning (aprendizagem baseada no cérebro): é só bobagem. Resvala muito na autoajuda”, critica. 

Para Louzada, que também é pós-doutor e coordenador do Laboratório de Cronobiologia Humana da UFPR, onde estuda as relações entre sono, aprendizagem e desempenho escolar, não cabe a um estudioso do cérebro ditar como um professor deve ou não ensinar, mesmo quando o docente está usando um conceito ‘errado’.  “Conversei uma vez com um professor que disse que passou a separar os alunos segundo esses supostos estilos de aprendizagem e teve resultados ótimos. Que ele continue com a prática então, porque a experiência dele em sala é o que importa — só não dá para ele dizer que é uma prática com base nas neurociências”, alerta.  

Neuroficação 

Mais do que espalhar bobagens insignificantes, o discurso das neurociências como uma panaceia para os problemas em sala de aula com seu caráter sedutor acaba fazendo com que a divulgação científica séria fique deixada de lado. “A quem interessa essa forma exagerada de divulgar? De um lado, a gente tem uma pressa jornalística, uma vontade de produzir lides bonitos e atraentes. De outro, temos a motivação de aumentar clientes, de vender cursos, livros, cliques em sites, etc.”, pondera o pesquisador da UFPR.  

Para Louzada, não cabe a um estudioso do cérebro ditar como um professor deve ou não ensinar, mesmo quando o docente está usando um conceito ‘errado’ (Foto: Gustavo Morita/revista Educação)


Colocar as neurociências em tudo ou exagerar o seu peso é chamado por Fernando Louzada de neuroficação. Assim, além dos riscos trazidos pelos neuromitos, há outros provocados pela neuroficação, como a negação da própria contribuição das neurociências. Uma das repercussões da ideia do papel exagerado das neurociências é muitos pedagogos acharem que tudo nessa área é um absurdo e rejeitarem as possíveis contribuições. Classificam como um modismo”, acredita ele.   

Até mesmo o prefixo ‘neuro’ deveria ser usado com mais moderação. Fernando Louzada cita que é importante os professores conhecerem um pouco sobre nutrição para ensinar aos alunos, mas nem por isso precisam estudar a ‘nutrieducação’.  

No momento atual do desenvolvimento científico, acreditar que as neurociências podem dar contribuições certeiras e prescritivas para a educação não passa de uma ilusão. Ligar de forma direta o que acontece com os neurônios de cada um com o que acontece em sala de aula, na interação entre um conjunto de pessoas, é um salto simplesmente grande demais, defende Louzada. “A psicologia cognitiva estabelece uma ponte melhor; deveríamos fazer uma ligação entre as neurociências e a psicologia cognitiva; e outra da psicologia cognitiva para a educação. Talvez seja melhor a gente olhar mais para as evidências da psicologia”, pondera. 

Mas se entender o funcionamento do cérebro não pode mostrar o que fazer em sala de aulas, qual seria a diferença para o educador conhecer o que diz a investigação neurocientífica? “Conhecer os mecanismos do cérebro pode não fazer falta, mas se o professor quiser saber porque tem interesse, é fantástico. São conhecimentos que podem ampliar a autonomia do professor, fazê-lo repensar as ferramentas de avaliação, entender aspectos de transtornos ou dislexia e TDAH, ou mesmo do comportamento dos adolescentes”, cita o pesquisador.  

Portanto, conhecer o funcionamento cerebral serve para integrar uma nova dimensão na compreensão do processo de ensino e aprendizagem. Louzada se apoia numa metáfora literária, da experiência do escritor José Saramago na ópera de Lisboa, para mostrar o valor das neurociências. Quando Saramago se sentou atrás da coroa que enfeitava o recinto, viu que a coroa só existia pela metade; que a parte de trás era oca, cheia de pó e teias de aranha. “Para conhecer as coisas, é preciso dar volta toda”, escreveu o português. Na educação, a neurociência é mais um passo para completar a volta.  

Visão ampla 

Adriana Fóz, neuropsicóloga, educadora e diretora da NeuroConecte, concorda que o ‘segredo’ de incluir as neurociências na sala de aula é torná-las fonte de conhecimento e reflexão, mas nunca como uma indicação certa de atividade ou didática. “Se um professor vê um aluno embotado, é interessante ele saber que a emoção vai afetar a qualidade da aprendizagem. Mas o que fazer para mudar aquela situação, isso tem que vir mesmo da experiência daquele professor, da relação que ele mantém com seus alunos. Educar é um processo dialético”, explica.  

O papel do professor não se confunde com o do psicólogo ou psiquiatra, mas como o aprender envolve as emoções, ou seja, é preciso ter sensibilidade para as questões emocionais. Da mesma forma, um professor deve estar atento a problemas físicos e deve encaminhar a um oftalmologista uma criança que precisa enxergar bem para ser capaz de aprender a ler e escrever.  

Ter o cuidado de entender como os processos cerebrais interferem na aprendizagem, portanto, aproxima o professor da sua função primordial de educar.

“O professor não precisa ser médico, mas se o aluno mostra sinais de uma patologia que dificulta a aprendizagem, o professor precisa identificar e encaminhar. Vale para a saúde física e mental. O professor não é o responsável pela saúde, mas por fatores de proteção”, afirma a diretora do NeuroConecte.  

O principal para os professores é entender que o cérebro se modifica, se reorganiza, se renova; fenômeno chamado plasticidade cerebral, pontua a neuropsicóloga Adriana Fóz (Foto: Arquivo pessoal)

Adriana Fóz reconhece que o excesso de preocupação com os caminhos do cérebro pode até atrapalhar na rotina. “A situação de aprendizagem no espaço escolar tem uma especificidade, que se dá naquele momento, e que não deve ter excesso de preocupação de como funciona os processos de aprendizagem”, diz. 

Segundo ela, o principal para os professores é entender que o cérebro se modifica, se reorganiza, se renova; fenômeno chamado plasticidade cerebral. “O cérebro é plástico quando se desenvolve na infância, na adolescência e sempre que se aprende. Essa última forma de mudar o cérebro é a vocação da educação”, explica.  

Portanto, na prática docente, não é necessário entender o papel da dopamina no sistema de recompensa, defende Adriana. “Há professores que se interessam, mas nenhum precisa saber detalhadamente dos mecanismos. O que é interessante — e o que ajuda no dia a dia — é o professor entender, por exemplo, que o adolescente vai ter menos sensação de prazer, que a emoção do adolescente suprime a capacidade de decisão. Quando briga, quando sofre alguma ameaça, quando se sente péssimo por algum motivo, não vai conseguir pensar na prova”, exemplifica. 

Para não precisar se tornar um especialista em cérebro e ainda assim ser capaz de ‘dar a volta toda’ e entender o que se passa no processo de ensino e aprendizagem sob diversos ângulos, o caminho para os professores deve incluir formações de qualidade. “Temos visto uma explosão de cursos, vários sites, páginas no Instagram, e muita porcaria. O processo de formação docente nessa área precisa ser muito cuidadoso, valorizar a experiência que os professores já têm, e ser orientado por profissionais sérios”, aconselha Adriana.  

Fonte:

Revista Educação: referência há 28 anos em reportagens jornalísticas e artigos exclusivos para profissionais da educação básica

Revista Educação