No campo da paleontologia, o Brasil é ao mesmo tempo um dos mais privilegiados em materiais de estudos e uma das maiores vítimas do tráfico.
Ubirajara Jubatus, um fóssil de dinossauro que foi retirado ilegalmente do País nos anos 1990 está prestes a retornar. Desde então, ele está até hoje no Museu de História Natural de Karlsruhe, na região de Baden-Württemberg, Alemanha. De acordo com o Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty), que está encarregado da negociação do governo brasileiro com o alemão em torno do material, Ubirajara deve chegar em junho, a tempo de participar da visita oficial de uma alta autoridade da Alemanha ao Museu Nacional/UFRJ – que está em fase de reconstrução após o incêndio de 2018 (leia mais na página 6). Durante a visita, deverá ser oficializado um programa de cooperação técnica e científica entre a entidade brasileira e o Museu de Karlsruhe.
Segundo fontes próximas ao caso, do Rio de Janeiro, o fóssil deve ser transportado para sua terra natal, a Chapada do Araripe, e seu novo endereço será o Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, da Universidade Regional do Cariri (URCA), no Ceará.
Se de fato se concretizar, a volta de Ubirajara será o desfecho de um episódio considerado divisor de águas na paleontologia mundial, caracterizada por séculos de tráfico de fósseis do Sul para o Norte Global. “É uma vitória dos paleontólogos brasileiros contra o colonialismo científico”, celebrou o presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia (SBP), Hermínio Ismael de Araújo Júnior.
Na definição do sociólogo norueguês, Johann Galtung, colonialismo científico é quando o centro de aquisição do conhecimento sobre uma nação está fora dela. O contrabando de fósseis foi uma das abordagens da mesa-redonda “Território ancestral: desafios nacionais da arqueologia e da paleontologia”, realizada durante a Reunião Regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) em Teresina (PI), em março.
Em sua apresentação, o professor Antonio Álamo Feitosa Saraiva, coordenador do Laboratório de Paleontologia da URCA e curador do Museu Cidade Nuvens, foi enfático: no campo da paleontologia, o Brasil é, ao mesmo tempo, um dos mais privilegiados em material de estudos e uma das maiores vítimas do tráfico. “Por todo o nosso território, temos fósseis de excepcional quantidade, diversidade e preservação”, afirmou o professor.
No entanto, muitos dos fósseis, em especial os da Bacia do Araripe (na divisa entre os estados de Ceará, Piauí e Pernambuco), estão nos museus de história natural de Nova York, Londres e Paris. “Estes museus estão ganhando muito dinheiro com o que é nosso”, ressaltou Saraiva. Ele contou que, além do dinossauro Ubirajara Jubatus, existem mais 14 pedidos de repatriação de fósseis só do Cariri. “Temos pedidos para os EUA, Alemanha, França, Inglaterra, Itália e Japão, envolvendo milhares de peças”. Segundo ele, há coleções de insetos e outros animais e vegetais que foram levados, em grande parte, sem sequer serem estudadas, descritas ou nominadas.
Saraiva destacou que a Bacia do Araripe é uma das três regiões fossilíferas mais importantes e bem preservadas do mundo, com registros de animais e plantas, inclusive dinossauros, que viveram no período Cretáceo (entre 150 e 90 milhões de anos atrás), uma fonte preservada e relevante para pesquisas.
Há outros sítios espalhados pelo País, como as florestas petrificadas de Santa Maria (RS), as bacias do Paraná – de onde sai a produção de carvão vegetal –, contendo um material que vai dos períodos Cambriano (há cerca de 541-485 milhões de anos) ao Carbonífero (360-290 milhões de anos); e a bacia de Peirópolis (MG), que abriga a Formação Marília, um dos mais ricos e significativos conjuntos de vertebrados fósseis também do Cretáceo, representados por peixes, sapos, lagartos, tartarugas, crocodilos e dinossauros (saurópodes e terópodes).
Nem todo o material paleológico perdido no Brasil se evade para o exterior. Muita coisa se transforma em “cal, cimento e pisos”, produtos da mineração de calcário voltados para a construção civil. Isso acontece, segundo Saraiva, devido à falta de controle e fiscalização. A situação se agravou depois da transformação do antigo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) em Agência Nacional de Mineração (ANM).
Conforme denunciou a agência de notícias G1, em abril de 2022, a polícia do Ceará desbaratou um esquema de tráfico internacional de fósseis retirados de minas de calcário que se desenvolveu pela ausência de fiscalização. “Infelizmente, a ANM, quem deveria fiscalizar isso, não está nem aí para fósseis. Eles dizem que ouro é receita, diamante é receita, esmeralda, petróleo, ferro, mas fóssil é despesa”, criticou Saraiva.
Nem tudo são más notícias. Além do retorno do dinossauro Ubirajara Jubatus, em fevereiro foi anunciado que, pela primeira vez, os fósseis foram incluídos na Lista Vermelha de Objetos Culturais Brasileiros em Risco do Conselho Internacional de Museus (ICOM).
A lista do ICOM é distribuída para autoridades policiais e alfandegárias de todo o mundo, além de disponibilizada na internet, para ajudar na prevenção da retirada do País e da circulação internacional ilegal dos bens. Arte sacra, mapas, livros e peças etnográficas e arqueológicas estão entre os bens culturais brasileiros sob maior risco de tráfico, segundo a instituição.
“A inclusão dos fósseis na lista do ICOM mostra a força deles como patrimônio cultural do País”, diz Hermínio Ismael de Araújo Júnior, da SBP.
Já para o paleontólogo Alexander Kellner, diretor do Museu Nacional, a inclusão na lista do ICOM é importante, mas não suficiente. Ele acha que, mais do que impedir a evasão, o País precisa ampliar muito o investimento para encontrar e pesquisar seus fósseis. “Se o Brasil investir em coleta, vai ter tanto fóssil que a gente não vai ter nem lugar para colocar”, afirmou.
Não vai mesmo ter lugar. O único museu de história natural comparável aos daqueles países, o Nacional, pegou fogo. Outros seis (em Alagoas, Minas Gerais, Paraíba, São Paulo e dois no Ceará) funcionam em espaços pequenos e são pouco conhecidos, mesmo da população local. A exceção é o Geopark Araripe, reconhecido pela Global Geoparks Network (GGN), da Unesco, é composto por quase 50 geossítios catalogados, com formações de até 450 milhões de anos. Dos 50 sítios, nove são pontos de visitação – que possuem estrutura para utilização turística e educativa.
Barulho nas redes sociais O resgate do Ubirajara Jubatus começou com um acontecimento raro no mundo científico. Em setembro de 2021, a revista científica Cretaceous Research anunciou a retirada de um artigo que descrevia o dinossauro, publicado quase um ano antes, acompanhado de uma nota de pedido de desculpas do editor.
No artigo, o paleontólogo Eberhard Frey e os coautores diziam que o fóssil havia sido levado para a Alemanha com amostras científicas em 1995, sob autorização do DNPM. Paleontólogos brasileiros questionaram a explicação dos autores e comprovaram a origem ilegal do material analisado pelos pesquisadores alemães.
“Ubirajara foi um marco histórico na nossa luta pela paleontologia brasileira”, reiterou Aline Ghilardi, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e responsável pelo “barulho” criado nas redes sociais que acabou contribuindo para a retratação e retirada do artigo da Creataceus Research.
Influenciadora digital, autora do canal de Youtube “Colecionadores de Ossos”, Ghilardi publicou um fio no Twitter explicando toda a história: o que é a Bacia do Araripe, porque o Ubirajara era importante, as penas que o tornaram uma descoberta inovadora – “display sexual na era mesozoica” na definição bem humorada dela - e sobre porque ela, enquanto cientista e pesquisadora, se sentia frustrada em ver mais um fóssil, um patrimônio nacional, desviado para o exterior.
“O primeiro fóssil de dinossauro com penas do Hemisfério Sul foi surrupiado daqui, levado para fora e está sendo descrito só por pesquisadores estrangeiros”, disse Ghilardi. “Ficou claro na descrição dos métodos do trabalho que nenhuma legislação brasileira foi cumprida.”
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