Coronavírus expõe a nossa desinformação sobre a China, o maior fenômeno econômico dos nossos tempos.
Foto: Nicolas Asfouri/AFP via Getty Images
EPIDEMIAS, DOENÇAS CONTAGIOSAS E CRISES SANITÁRIAS são momentos que desvelam racismo, estigma e discursos colonialistas que se perpetuam no mundo. No Brasil, um exemplo disso ocorreu em 2014, quando a possibilidade da ebola chegar ao país gerou um surto, não da doença, mas do vírus letal da xenofobia, como bem definiu Eliane Brum.
A atual repercussão do coronavírus na China reabre esse debate que, em última instância, é sobre produção de conhecimento e poder.
Não é a primeira vez que a China passa por uma crise epidêmica. A história das doenças contagiosas que se espalham medo é longa. Também é longa a história de como as autoridades chinesas, com seus erros e acertos, contornaram suas próprias crises, como no surto de cólera de 1949 e a varíola em 1950.
A mais recente e marcante epidemia foi a Síndrome Respiratória Aguda Severa, a Sars, na sigla em inglês. Como pontuaram os sinólogos Arthur Kleinman e James Watson, no livro “Sars in China: prelude to pandemic?”, a Sars em 2003 provocou uma das mais sérias crises de saúde de nossos tempos. Kleinman, que tem cinco décadas de experiência em intervenção em saúde pública na China, acredita que a epidemia foi uma espécie de prelúdio de novas catástrofes de saúde que viriam acontecer no século 21. Ainda que o número de mortes tenha sido de aproximadamente 1.000 pessoas – pequeno comparado a outras epidemias –, a Sars mobilizou inseguranças, medos e preconceitos sobre o país. Os Estados Unidos não pouparam os boatos de que se estaria espalhando bioterror em seu território. O impacto sobre as vidas humanas na China e sobre a economia global foi tremendo, desvelando a fragilidade do mundo globalizado.
Passada a Sars, hoje a notícia do coronavírus se espalha por meio de uma onda de pânico moral que mistura fake news, desinformação, racismo e estereótipos tolos. Notícias falsas gravíssimas percorrem o WhatsApp. A mais debatida nas redes sociais foi a de que o vírus teria tido origem na sopa de morcegos, o que fez com que brasileiros – que vivem no país que se come coração de galinha e tripa de boi – ficassem escandalizados. Um vídeo no Twitter mostrava uma cena grotesca de um jovem chinês comendo um pássaro vivo, como a prova cabal que era por isso que o vírus se espalha.
Na apuração de informações para esta coluna, descobri, com a ajuda do professor David Nemer, da Universidade de Virgínia (EUA), que grupos bolsonaristas no WhatsApp foram inundados de boatos, em forma de “breaking news”, que diziam que os chineses estavam morrendo caídos nas ruas, que pais abandonaram filhos no aeroporto ao saberem da contaminação e que 23 milhões de pessoas estavam em quarentena e 112 mil haviam morrido. Essa é a narrativa apocalíptica – ou a doutrina do choque, como diria a escritora Naomi Klein – sempre muito bem manipulada para fins políticos.
Tudo isso repete o antigo imaginário euro-estadunidense que procura associar a China à impureza simbólica e concreta. Há pelo menos 30 anos, a imprensa liberal ocidental, quando aborda o produção de manufaturas baratas, recorre sistematicamente à expressão “infestação” do mundo de mercadorias chinesas. Os chineses estão sempre contaminando o mundo de alguma forma.
Para contrabalançar os estereótipos negativos, vieram os estereótipos positivos. A grande notícia das redes sociais foi de que “A China construirá um hospital em 10 dias” – manchete que circulou de forma padronizada em diversos veículos. A difusão dessa notícia veio dos órgãos oficiais da imprensa chinesa, numa tentativa de direcionar as narrativas internacionais sobre a epidemia e o país.
É evidente que a manchete do hospital tem uma intenção positiva, que é mostrar uma China dinâmica, com tecnologia de ponta e vontade governamental para resolver seus problemas internos. Mas não deixa de ser o estereótipo do outro extremo, que reatualiza o eterno retorno da mítica chinesa acerca de suas grandiosas construções.
Autores como historiador búlgaro Tzvetan Todorov e o antropólogo francês François Laplantine mostraram que a imagem do Brasil pelos missionários europeus no século 16 era ambivalente: entre o mau e o bom selvagem, paraíso ou inferno. Os maus selvagens eram os indígenas rudes, sem roupa, sem pelo, sem alma. Os bons selvagens eram os nativos de alma pura, que não conheciam a malícia e a maldade.
No caso dos morcegos e desinformação, vê-se um etnocentrismo cru que desumaniza o outro. No caso do hospital, cai-se em idealização também estereotipada.
É importante frisar que não estou fazendo uma crítica a quem compartilhou a notícia. Eu mesma compartilhei. A construção rápida de um hospital mostra pragmatismo diante da calamidade. Além disso, a notícia tem um papel político para se opor à fantasia acerca dos morcegos, que fixam os chineses em um lugar bárbaro e exótico.
O problema, portanto, não é nossa ação individual, mas precisamente o desalentador fato de que, entre o morcego e o hospital, não sobra quase nada. Caímos sempre na armadilha do dualismo “tradição-modernidade”. Se a gente olha esse debate de longe, estruturalmente, o que concluímos é que não saímos do mesmo lugar de narrativas extremas e caricatas sobre o maior fenômeno econômico mundial dos nossos tempos. Sabemos muito pouco sobre o país mais populoso do mundo, com quase 1,4 bilhão de pessoas.
Como disse o historiador Peter Burke, os estereótipos sobre o outro tendem a ser hostis, desdenhosos ou condescendentes, transformado-o em exótico, distante e até monstros. A ideia de uma China envolta em um véu de mistérios – e por causa disso, um país incompreensível – é uma invenção colonialista centenária, que responde a um projeto de poder. De um lado, a caricatura não rompe com o colonialismo que criou uma imagem bárbara e exótica do oriente. Por outro, alimenta a mediocridade intercultural do projeto de nação brasileiro no qual estamos afundados atualmente.
Conhecimento made in Brazil
No início dos anos 2000, em função da conjuntura política dos BRICS, da China ter se tornado o maior parceiro comercial do Brasil, que envolveu a missão de Lula em 2004 à China e as Olimpíadas de Beijing de 2008, a mídia começou a romper o silêncio sobre o país oriental.
Em 2005, fiz uma pesquisa sobre representação da China na mídia brasileira. As capas de revista mostravam um dragão que ora ia nos devorar com sua economia, ora ia nos salvar. A revista Exame de 2005 trazia um dragão monstruoso, com suas garras de fora, engolindo um papagaio, que representava o Brasil.
Muitas matérias que surgiam antes das Olimpíadas iam nessa direção. Lembro de uma reportagem do Fantástico que passou grande parte do tempo mostrando as pessoas comendo inseto, e outra metade falando de um prédio transplantado e reerguido em pouquíssimo tempo. Em 2013, o problema persistia. Na primeira página de meu livro “China, Passado e Presente”, eu falava que precisávamos superar as visões binárias entre o país exótico de pessoas estranhas que comem barata e o hipermoderno que constrói um prédio em poucos dias – precisamente a mesma coisa que volta em 2020.
Apesar dessas imagens se repetirem, o cenário político, econômico e cultural em relação à China era promissor e apontava um horizonte de conhecimento mútuo. Era a política-externa lulista, focada na cooperação sul-sul, nos BRICS, na produção de novas narrativas em um mundo que buscava a multipolaridade das relações internacionais.
O campo da sinologia profissional feita no Brasil se consolidava. Até então, como disse o professor de literatura Edward Said, os estudos sobre oriente nasceram no berço colonialista em que estudar o outro era uma forma de “dominar/controlar/intervir”. Mas a emergente sinologia no Brasil fazia parte de um projeto novo de conhecimento que repensava o mundo desde o sul global.
Escolas de chinês abriam por todos os lados, a Varig anunciava voo para Beijing e todo mundo queria fazer seu negócio da China. Entre os anos 2000 e 2013, também foi a era de ouro do jornalismo brasileiro e seus enviados especiais na China: Cláudia Trevisan, Gilberto Scofield, Sônia Bridi e Janaína Camara da Silveira, para citar apenas alguns nomes. Suas reportagens e seus livros também iam preenchendo o vazio narrativo deixado entre a sopa de morcegos e o prédio erguido em 10 dias.
Morar na China naquela época era viver no futuro dos países emergentes e sentir-se um ator da nova história do sistema mundial. Mas esse futuro – a gente sabe – virou pretérito. Esse mundo colapsou. A grande maioria dos enviados especiais foi embora e, hoje, em plena crise epidêmica, a imprensa brasileira se vira como pode para procurar especialistas que possam reportar uma visão realista do que está acontecendo.
No lado político, esse vazio informacional em relação à China não deve mudar nos próximos três anos. Nossa política externa é outra. Jair Bolsonaro diz “I love you” ao Trump, enquanto que o ministro das Relações Exteriores segue teorias eurocêntricas de extrema-direita que defendem a “civilização ocidental branca”. Não é à toa que os grupos bolsonaristas estão cheio de notícias falsas gravíssimas. Esse é o universo suscetível a visões maniqueístas e apocalípticas sobre o mundo.
Ainda que atualmente a gente tenha uma geração de sinólogos muito mais profissionalizada do que a que se formava nos anos 2000, os pesquisadores de hoje vivem um Brasil que tem pouco interesse na China. Desde 2013, o Brasil voltou-se a si próprio e alienou-se ainda mais do resto do mundo.
Conhecimento sobre a China exige jornalismo especializado, intercâmbio científico bilateral, aprendizado da língua, transformação dos currículos escolares, importação da indústria cultural e tradução de livros. Nada disso está no nosso horizonte a curto prazo em termos de projeto nacional.
Existe muito a se conhecer sobre a China e os chineses. Assim como comem cachorros, produzem excelentes vinhos. É um país que detém de uma indústria cinematográfica excepcional, no qual as cópias baratas convivem com a inovação tecnológica. Um país onde há uma explosão de movimentos LGBT e feministas que exigem seus direitos e negociam com o governo em seus próprios termos. Um país que tira milhões de pessoas da pobreza, mas que mantém o desafio da desigualdade.
Tanto a desinformação a respeito do vírus quanto o próprio desinteresse sobre o vírus são sintomáticos de uma era de pobreza informacional no âmbito intercultural. Só falamos do vírus de forma egoísta: quando o risco e o pânico batem em nossa porta. Quando a ignorância impera como um projeto nacional, a tendência é que a xenofobia, os preconceitos e as caricaturas reinem sozinhos.
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