sexta-feira, 10 de maio de 2024

O MILAGRE ECONÔMICO BRASILEIRO E A FALÊNCIA DO ESTADO BRASILEIRO. UMA HERANÇA DOS GOVERNOS MILITARES



O VÍDEO MOSTRA UM BOM RESUMO DO QUE FOI O MILAGRE ECONÔMICO BRASILEIRO NO PERÍODO DOS GOVERNOS MILITARES. SUAS ORIGENS, VIVÊNCIAS E FALÊNCIAS.





Policial na ditadura
Aspecto econômico do regime militar foi marcado por alto investimento público e forte endividamento
ARQUIVO NACIONAL
O período iniciado em 1968 foi marcado pelo fechamento do Congresso Nacional, pela tortura de adversários políticos e pela morte e desaparecimento de mais de 400 pessoas, como indica o relatório da Comissão Nacional da Verdade.
Ainda assim, não é incomum que o período do regime militar no Brasil, entre 1964 e 1985, seja lembrado por alguns com certa nostalgia como um tempo marcado por um forte crescimento da economia, que ficou conhecido "milagre econômico". A economia brasileira nunca cresceu tanto - antes ou depois. A taxa média de crescimento nesse período girava em torno de 10% por ano.
Mas especialistas notam que o regime militar deixou para o país uma herança maldita para a economia, como o agravamento de alguns dos problemas que ainda marcam o noticiário econômico brasileiro, como o endividamento do setor público e o aumento da desigualdade social.
"O governo militar, quando assume em 1964, enfrenta um período de bastante desorganização da economia, com desequilíbrio fiscal, inflação alta e desemprego. Havia um desgaste muito grande do modelo econômico anterior, com o fracasso do Plano Trienal (para retormar o crescimento econômico). Eles conseguiram modernizar a economia, mas isso teve um alto preço, que acabou sendo pago após a redemocratização, como hiperfinflação e dívida externa estratosférica", diz Vinicius Müller, professor de história econômica do Insper, à BBC News Brasil.
Mesmo serviços públicos, como a educação eram restritos e sofreram uma clara erosão de investimentos do Estado. O desenvolvimento da indústria, por outro lado, se deu à custa de muito endividamento público. A dívida externa brasileira cresceu em mais de 30 vezes. Se o PIB cresceu como nunca, a repressão limitou o poder de barganha dos sindicatos, e o salário dos trabalhadores amargou duas décadas de reajustes abaixo da inflação.
A BBC News Brasil analisou os dados do período e entrevistou historiadores, economistas e sociólogos em busca de um raio-x do legado socioeconômico do regime militar. Veja os principais pontos.

Havia menos corrupção?

Pouco se ouve falar em corrupção durante a ditadura. Mas isso quer dizer que ela não existiu?
O ambiente do regime militar era "ideal para práticas corruptas", segundo o professor Pedro Henrique Pedreira Campos, do Departamento de História e Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor do livro Estranhas Catedrais: As Empreiteiras Brasileiras e a Ditadura Civil-militar, 1964-1988, que analisa mais profundamente essa relação.
"Os mecanismos de fiscalização eram inexistentes ou estavam amordaçados: a imprensa, a oposição política, o Parlamento. As próprias instituições do Estado, como Polícia Federal, Ministério Público e Judiciário, sofreram forte limitação na sua atuação naquele período", diz Campos.
Crescimento do PIB em % (1964-1985)
O Brasil nunca cresceu tanto quanto no governo militar | Crédito: Banco Mundial com elaboração BBC
Campos lembra, ainda, que "mesmo com todo esse amordaçamento dos mecanismos de fiscalização, alguns casos vieram à tona, principalmente no período da transição política, e foram denunciados publicamente".
É o caso, por exemplo, do Relatório Saraiva, que envolve a suposta cobrança de propina por parte de Delfim Netto, então ministro da Fazenda, em obras de engenharia e financiamento para equipamentos de usinas hidrelétricas. Delfim sempre negou a acusação.
"O próprio SNI (Serviço Nacional de Informações), o órgão de espionagem da ditadura, flagrou alguns ministros, empresários e agentes públicos cobrando propina e recebendo recursos ilegais por parte de empresas para ter favorecimentos", diz.
"Não é porque tínhamos menos notícia de corrupção que havia menos (atos de corrupção). Pelo contrário, tudo aponta que a corrupção era deliberada. O que a gente conhece e que veio a público provavelmente é a ponta do iceberg das irregularidades que foram cometidas naquele período. É uma pena que exista um desconhecimento de grande parte da população em relação a isso", conclui Campos.

'Crescimento chinês' e Estado na infraestrutura

De fato, o PIB brasileiro (Produto Interno Bruto, ou a soma de todas as riquezas produzidas) cresceu muito durante o governo militar. No início do regime, o crescimento foi baixo por conta das medidas tomadas para conter a inflação, que chegava a quase 100% ao ano.
Mas, a partir de 1968, a economia deslanchou. Inaugurava-se um período de cinco anos que ficou conhecido como "milagre econômico", quando o país cresceu a taxas elevadas e sem precedentes.
Em 1973, no auge do "milagre", o PIB cresceu 14%.
Imagine se toda essa riqueza acumulada fosse dividida igualmente por toda a população brasileira. É o chamado PIB per capita, que não considera a desigualdade, mas dá uma primeira ideia da evolução no período. Foi de US$ 261 em 1964 para US$ 1.643 em 1985.
Em 1964, um brasileiro ganhava, em média, o equivalente a 17% da renda recebida por um típico cidadão americano. Já em 1978, a renda média do brasileiro passou a corresponder a 28% a do americano. O problema era que nem todos recebiam igual fatia do bolo.
"Os militares alcançaram resultados bem positivos do ponto de vista econômico na primeira metade do regime: conseguiram controlar a inflação (em um primeiro momento), aumentaram a produtividade da economia, modernizaram a máquina pública e o parque industrial. Além disso, fortaleceram o Estado, que passou a ter um protagonismo significativo nos investimentos em infraestrutura", diz Guilherme Grandi, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP (FEA/USP).
A taxa de investimento público em relação ao PIB passou de quase 15% em 1964 para 23,3% em 1975.
"Mas como isso foi feito? Foi feito em um ambiente autoritário, à custa de muitas vidas", ressalva.
Protesto contra ditadura
ARQUIVO NACIONAL
Ditadura militar achatou salário dos trabalhadores

Emprego, obras públicas e financiamento internacional

Com esse crescimento, também vieram mais empregos, especialmente na indústria.
Em 1965, o setor empregava 2 milhões de pessoas. Vinte anos depois, em 1985, 3,5 milhões.
A inflação também caiu. Foi de 92% em 1964 para 15,6% em 1973.
Mas como isso foi possível? Houve uma combinação de fatores.
Os militares incentivaram a entrada do capital estrangeiro, estimularam exportações e implementaram medidas para proteger o investimento financeiro, como a correção monetária. Foram feitas reformas fiscais, tributárias e financeiras.
"A criação do Banco Central (1964), que administra nossa política monetária, data desse período", lembra Grandi, da Faculdade de Economia e Administração da USP (FEA/USP).
O governo também apostou em grandes obras. Vieram a Ponte Rio-Niterói, a mega usina de Itaipu, usinas nucleares de Angra, polos petroquímicos e Rodovia Transamazônica (até hoje não concluída).
Mas grande parte desse "milagre" só foi possível graças ao dinheiro internacional. Era uma época de crédito farto no exterior. O capital estrangeiro chegou ao Brasil tanto pelas chamadas multinacionais, que encontraram no nosso país um ambiente mais favorável, quanto por empréstimos tomados de instituições internacionais.

Ditadura militar
Militares modernizaram economia, mas a que custo? | Crédito: Arquivo Nacional
Salário mínimo real
No início da ditadura, a inflação foi controlada, mas às custas das classes mais baixas, os trabalhadores | Crédito: Ipeadata com elaboração @brasilemdados

Arrocho salarial e enfraquecimento dos sindicatos

Mas a conta do milagre não saiu nada barata. No início da ditadura, a inflação foi controlada, mas às custas das classes mais baixas, dos trabalhadores. Os salários foram achatados, já que foi mudada a fórmula que reajustava os salários pela inflação.
No governo militar, os trabalhadores tiveram aumentos salariais que eram insuficientes para recompor as perdas causadas pela elevação dos preços, reduzindo o poder de compra.
Entre 1964 e 1985, o salário mínimo caiu 50% em valores reais, ou seja, já ajustados pela inflação. Foram precisos 30 anos para recuperar o poder salarial dos mais pobres.
Esse arrocho salarial aconteceu em parte como resultado da intervenção dos militares sobre os sindicatos, o que diminuiu o poder dos movimentos e de negociação dos operários. Muitas dessas associações foram desmanteladas. Vários dirigentes sindicais foram presos ou substituídos por simpatizantes do regime.
O achatamento dos salários diminuiu o custo de mão-de-obra. Além disso, foi reduzida a alíquota máxima do Imposto de Renda, beneficiando os mais ricos, e concedidas várias isenções fiscais ao empresariado.
Foi criada a chamada correção monetária, um instrumento que protegia os investimentos da inflação e favoreceu mais quem tinha dinheiro para investir no mercado financeiro.
"Os trabalhadores foram os grupos mais fragilizados para disputar politicamente esses ganhos. Houve uma resposta muito agressiva contra eles", diz Müller, do Insper.
Concentração de renda
Desigualdade cresceu nas duas ditaduras | Crédito: Souza (2018) com elaboração @brasilemdados

Riqueza na mão de poucos

Na visão dos militares, era "preciso fazer o bolo crescer para depois reparti-lo". A frase, que se tornou célebre, foi dita por Delfim Netto, ministro da Fazenda de 1967 a 1974 e considerado o "pai" do milagre econômico. Não era a única teoria econômica que embasava o desenvolvimento em diferentes partes do mundo, mas foi a que prevaleceu no país.
As medidas implementadas, no entanto, acabaram também acentuando a desigualdade social de uma forma nunca vista, aumentando enormemente a concentração de riqueza.
Em 1964, o 1% mais rico da população detinha entre 15-20% de toda a renda do país. No fim da ditadura, passou a controlar quase 30%, como mostra um estudo conduzido por Pedro Ferreira de Souza, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da UnB.
Souza usou dados do Imposto de Renda, seguindo a mesma metodologia do economista francês Thomas Piketty, conhecido por ampliar as discussões sobre desigualdade social no mundo com seu livro O Capital do Século 21 (2014).
"Meu estudo mostrou que a desigualdade não foi consequência do milagre econômico, mas se acentuou antes desse período, com as decisões do governo militar que jogou a conta do ajuste no colo dos trabalhadores", diz Souza à BBC News Brasil.
O especialista lembra ainda que os militares acabaram com a estabilidade após dez anos de serviço, regra que valia no setor privado. Em contrapartida, criaram o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
"O governo arranjou um motivo político para acabar com a estabilidade e criou um mecanismo de poupança forçada para subsidiar empréstimos para financiar setores escolhidos. Ficou mais barato para as empresas demitirem. Ou seja, antes do reajuste anual, vários funcionários eram demitidos e recontratados logo depois. E a rede de proteção social do Brasil daquela época era quase nula", explica Souza.

O choque do petróleo de 1973

A trajetória de crescimento do PIB do Brasil começou a mudar em 1973, quando o Brasil e o mundo se surpreenderam com o primeiro choque do petróleo. Os países árabes exportadores de petróleo acertaram um embargo direcionado às nações que eram vistas como apoiadoras de Israel.
Como consequência imediata, o preço do barril de petróleo quadruplicou, afetando países importadores, como o Brasil. O crédito, que antes era farto, ficou de repente escasso. A economia brasileira, tão dependente de empréstimo estrangeiro, passou a enfrentar dificuldade. A rolagem da dívida externa teve de ser feita a juros mais elevados.
Lembram-se do crescimento de 14% em 1973? Ele caiu para 9% no ano seguinte e 5,2% em 1975.
Mas os militares decidiram não abrir mão do modelo econômico. Eles defendiam que o país deveria continuar crescendo a qualquer custo.
A opção foi continuar se endividando. Não esperavam, porém, uma nova piora do quadro externo.
Em 1979, houve uma segunda crise do petróleo. O Irã, então segundo maior produtor mundial, cortou a venda e a distribuição da matéria-prima, devido à Revolução Islâmica liderada pelo aiatolá Khomeini. O preço médio do barril explodiu. Mais um golpe à economia brasileira.
Mudança de rumo? Não, o Brasil decidiu continuar a se endividar.
Jovens cursando o Ensino Médio
Mais estudantes passaram a frequentar Ensino Médio com democracia | Crédito: IBGE com elaboração @brasilemdados

Menos dinheiro para a educação

Você já ouviu falar que, antigamente, a escola pública época era de boa qualidade e só quem estudava em colégios particulares era quem não fosse capaz de acompanhar a rigidez da escola pública?
O que muitos não sabem é que o processo de deterioração do ensino público ganhou força justamente no regime militar.
De fato, os governantes do período conseguiram reduzir a taxa de analfabetismo e estenderam a obrigatoriedade da educação básica. Segundo censos do IBGE, a taxa de analfabetismo de pessoas com 15 anos ou mais caiu de 33,6% em 1970 para 20% em 1991.
Também houve um foco importante na pós-graduação - especialmente na área de ciência e tecnologia.
No entanto, a ampliação do ensino não foi acompanhada de um aumento dos investimentos em educação. A verba, por outro lado, caiu.

Evolução do número total de matrículas em cursos presenciais de gradução
Entre 1980 e 2016, a população brasileira cresceu 1,7 vezes. Nesse mesmo período, número de matrículas no ensino superior público e privado cresceu 4,75 vezes | Crédito: @brasilemdados

A Constituição de 1967, aprovada durante a ditadura, trouxe duas alterações que mudariam o rumo da política educacional brasileira.
Primeiro, desobrigou o investimento público mínimo no setor.
No governo anterior, de João Goulart, a legislação previa que a União tinha de investir pelo menos 12% do PIB em educação. Além disso, obrigava Estados e municípios a alocarem 20% do orçamento na área de educação.
Em 1970, esse percentual foi para 7,6% do PIB, caiu para 4,31% em 1975, se recuperou um pouco e atingiu 5% em 1978.
Segundo, os militares abriram o ensino para a iniciativa privada, principalmente no ensino superior.
"O regime militar relativizou o princípio da gratuidade do ensino. O significativo aumento da participação privada na oferta de ensino, principalmente em nível superior, foi possível pelo incentivo governamental assumido deliberadamente como política educacional", diz à BBC News Brasil Dermeval Saviani, professor emérito da Unicamp e estudioso do tema.
Dados compilados por ele mostram que, de fato, ocorreu no período uma grande expansão do ensino superior. Entre 1964 e 1973, enquanto o ensino primário cresceu 70,3%, o ginasial, 332%, o colegial, 391%; o ensino superior foi muito além, tendo crescido no mesmo período 744,7%.
"E o grande peso nessa expansão se deveu à iniciativa privada: entre 1968 e 1976, o número de instituições públicas de ensino superior passou de 129 para 222, enquanto as instituições privadas saltaram de 243 para 663", explica Saviani.
Os militares também estenderam a educação básica obrigatória de quatro para oito anos.
"A mudança foi positiva. Mas não foi acompanhada de um crescimento de verbas em igual proporção", afirma o pesquisador.
Como resultado, não havia professor para todo mundo e a formação de novos docentes ficou prejudicada. Os salários e as condições de trabalho se deterioraram. O magistério deixou de ser uma profissão cobiçada pela classe média. Foram contratados os chamados professores leigos (sem qualificação pedagógica) para atender a demanda.
No Nordeste, por exemplo, 36% do quadro de docentes tinham apenas o 1º grau completo.
Tudo isso acabou por sucatear as escolas públicas.
Assim, os filhos da classe média que antes estavam matriculados nas escolas públicas passaram a frequentar colégios particulares. Os colégios públicos ficaram voltados aos mais pobres e esquecidos pelo governo.
Especialistas em educação tendem a atribuir a piora em serviços públicos em várias partes do mundo a medidas que incentivam a migração da classe média para a rede privada, deixando a rede pública desprovida da pressão política por melhorias tradicionalmente feita pela classe média escolarizada e ciente de seus direitos.
População urbana no Brasil
Exôdo rural foi foi mal planejado e nunca pôde ser revertido
Expectativa de vida ao nascer no Brasil 1964-1985
Expectativa de vida subiu de 56,3 anos para 63,5 anos no mesmo período

Queda na mortalidade infantil e saúde privada

Na área da saúde, houve avanços. A mortalidade infantil caiu pela metade de 1964 a 1985, e a expectativa de vida subiu de 56,3 anos para 63,5 anos no mesmo período.
Mas apesar do progresso em alguns indicadores, especialistas apontam que o regime militar "privatizou a saúde".
O Estado passou a diminuir sua participação no atendimento à população e foi substituído aos poucos pela rede privada.
De 1964 até 1974, o número de hospitais com fins lucrativos foi de 944 para 2.121.
Já o êxodo rural, a saída do campo rumo às cidades, foi mal planejado e nunca pôde ser revertido. As cidades brasileiras, despreparadas para o imenso contigente de pessoas que chegavam do interior, ficaram inchadas. Sem uma política habitacional efetiva, comunidades pobres, como favelas, se multiplicaram sem acesso a infraestrutura e saneamento básico.
Dívida externa brasileira em US$ (1970-1985) | Crédito: Banco Mundial com elaboração BBC
Dívida externa brasileira em US$ (1970-1985) | Crédito: Banco Mundial com elaboração BBC

Ganhos que não se sustentaram

Voltando à economia, o modelo adotado pelo regime militar se mostrou um "castelo de areia", segundo especialistas entrevistados pela BBC News Brasil.
Inflação anual
Inflação, que foi controlada de fato no início do regime, explodiu na segunda metade dele | Crédito: Banco Mundial com elaboração BBC
A inflação, que foi controlada no início, explodiu na segunda metade do regime. Em 1985, o índice anual já batia 231%. Quatro anos depois, durante o governo Sarney, eleito indiretamente pelo Congresso, a inflação chegou a quase 2.000% em 12 meses.
O endividamento subiu de 15,7% do PIB em 1964 para 54% do PIB quando os militares deixaram o poder, em 1984.
A dívida externa cresceu 30 vezes. Passou de US$ 3,4 bilhões em 1964 para mais de US$ 100 bilhões em 1985.
E ainda que a renda média tenha avançado, o salto brasileiro foi muito inferior ao da Coreia do Sul, por exemplo, cuja trajetória é frequentemente comparada à do Brasil.
Em 1964, o PIB per capita da Coreia do Sul era de US$ 123,59, a metade do brasileiro. Em 1985, quando a ditadura militar brasileira acabou, já era 50% maior do que o nosso (US$ 2.457,33).
Evolução do PIB per capita do Brasil e da Coreia do Sul entre 1964 e 1985
Evolução do PIB per capita do Brasil e da Coreia do Sul entre 1964 e 1985 | Crédito: Banco Mundial com elaboração BBC

O dia em que o país "faliu"

Em 1982, portanto ainda no regime militar, o Brasil quebrou. Começava a crise da dívida, no que se convencionou chamar de "década perdida", que pôs fim ao modelo de forte crescimento do país, sustentado no endividamento externo e políticas desenvolvimentistas como a substituição de importações (relançada posteriormente no governo Lula).
Cinco anos depois, o país declarou a moratória: o presidente José Sarney anunciou a suspensão do pagamento dos juros da dívida externa por tempo indeterminado. Não tínhamos mais dinheiro e a inflação estava nas alturas.
Nesse cenário, os militares se despediram do comando. Basicamente, deixaram de presente para a democracia uma conta bem alta, o que se convencionou chamar de "herança maldita".
"As reformas feitas pelos militares foram feitas sem o contraditório da oposição. Foram medidas polêmicas, que implicaram em vencedores e perdedores. Não houve discussão porque o regime era de exceção", diz à BBC News Brasil Claudio Hamilton dos Santos, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Vale lembrar que naquela época só havia dois partidos - MDB (oposição) e Arena (governista). Vários opositores do regime foram presos ou exilados.


NEUROCIÊNCIAS: O PERIGO DAS RECEITAS PRONTAS NA APRENDIZAGEM

O discurso das neurociências como uma panaceia para os problemas em sala de aula com seu caráter sedutor acaba fazendo com que a divulgação científica séria fique deixada de lado.

O processo de aprendizagem é complexo, mas o excesso de cobrança por resultados e a pressa em obtê-los fazem com que muitos educadores e educadoras acabem recorrendo a receitas prontas, várias delas supostamente baseadas nas neurociências. Sem conhecimentos prévios na área e com pouco tempo para se aprofundar, profissionais da educação acabam sendo vítimas em potencial para os neuromitos, um antigo tipo de fake news sobre o cérebro.  

Entre as ideias erradas sobre o funcionamento cerebral que circulam na educação, uma das mais persistentes é o mito dos diferentes ‘estilos de aprendizagem’ — visual, auditivo, sinestésico. Na realidade, quanto mais estímulos, e mais variados, melhor para todo mundo.   

E não faltam cursos rápidos e sem base teórica, além de influenciadores de redes sociais com pouco ou falta de conhecimento. “Vende-se uma ideia de que a aprendizagem é um processo só do cérebro, e dentro dele estará tudo resolvido. Isso é no fundo uma ingenuidade, uma falha de perceber a complexidade do que é aprender”, afirma o neurocientista Fernando Louzada, pesquisador do departamento de fisiologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). 

Esse movimento não é recente. Louzada conta que há 20 anos se preocupa com a questão. “Comprei meia dúzia de livros sobre o brain based learning (aprendizagem baseada no cérebro): é só bobagem. Resvala muito na autoajuda”, critica. 

Para Louzada, que também é pós-doutor e coordenador do Laboratório de Cronobiologia Humana da UFPR, onde estuda as relações entre sono, aprendizagem e desempenho escolar, não cabe a um estudioso do cérebro ditar como um professor deve ou não ensinar, mesmo quando o docente está usando um conceito ‘errado’.  “Conversei uma vez com um professor que disse que passou a separar os alunos segundo esses supostos estilos de aprendizagem e teve resultados ótimos. Que ele continue com a prática então, porque a experiência dele em sala é o que importa — só não dá para ele dizer que é uma prática com base nas neurociências”, alerta.  

Neuroficação 

Mais do que espalhar bobagens insignificantes, o discurso das neurociências como uma panaceia para os problemas em sala de aula com seu caráter sedutor acaba fazendo com que a divulgação científica séria fique deixada de lado. “A quem interessa essa forma exagerada de divulgar? De um lado, a gente tem uma pressa jornalística, uma vontade de produzir lides bonitos e atraentes. De outro, temos a motivação de aumentar clientes, de vender cursos, livros, cliques em sites, etc.”, pondera o pesquisador da UFPR.  

Para Louzada, não cabe a um estudioso do cérebro ditar como um professor deve ou não ensinar, mesmo quando o docente está usando um conceito ‘errado’ (Foto: Gustavo Morita/revista Educação)


Colocar as neurociências em tudo ou exagerar o seu peso é chamado por Fernando Louzada de neuroficação. Assim, além dos riscos trazidos pelos neuromitos, há outros provocados pela neuroficação, como a negação da própria contribuição das neurociências. Uma das repercussões da ideia do papel exagerado das neurociências é muitos pedagogos acharem que tudo nessa área é um absurdo e rejeitarem as possíveis contribuições. Classificam como um modismo”, acredita ele.   

Até mesmo o prefixo ‘neuro’ deveria ser usado com mais moderação. Fernando Louzada cita que é importante os professores conhecerem um pouco sobre nutrição para ensinar aos alunos, mas nem por isso precisam estudar a ‘nutrieducação’.  

No momento atual do desenvolvimento científico, acreditar que as neurociências podem dar contribuições certeiras e prescritivas para a educação não passa de uma ilusão. Ligar de forma direta o que acontece com os neurônios de cada um com o que acontece em sala de aula, na interação entre um conjunto de pessoas, é um salto simplesmente grande demais, defende Louzada. “A psicologia cognitiva estabelece uma ponte melhor; deveríamos fazer uma ligação entre as neurociências e a psicologia cognitiva; e outra da psicologia cognitiva para a educação. Talvez seja melhor a gente olhar mais para as evidências da psicologia”, pondera. 

Mas se entender o funcionamento do cérebro não pode mostrar o que fazer em sala de aulas, qual seria a diferença para o educador conhecer o que diz a investigação neurocientífica? “Conhecer os mecanismos do cérebro pode não fazer falta, mas se o professor quiser saber porque tem interesse, é fantástico. São conhecimentos que podem ampliar a autonomia do professor, fazê-lo repensar as ferramentas de avaliação, entender aspectos de transtornos ou dislexia e TDAH, ou mesmo do comportamento dos adolescentes”, cita o pesquisador.  

Portanto, conhecer o funcionamento cerebral serve para integrar uma nova dimensão na compreensão do processo de ensino e aprendizagem. Louzada se apoia numa metáfora literária, da experiência do escritor José Saramago na ópera de Lisboa, para mostrar o valor das neurociências. Quando Saramago se sentou atrás da coroa que enfeitava o recinto, viu que a coroa só existia pela metade; que a parte de trás era oca, cheia de pó e teias de aranha. “Para conhecer as coisas, é preciso dar volta toda”, escreveu o português. Na educação, a neurociência é mais um passo para completar a volta.  

Visão ampla 

Adriana Fóz, neuropsicóloga, educadora e diretora da NeuroConecte, concorda que o ‘segredo’ de incluir as neurociências na sala de aula é torná-las fonte de conhecimento e reflexão, mas nunca como uma indicação certa de atividade ou didática. “Se um professor vê um aluno embotado, é interessante ele saber que a emoção vai afetar a qualidade da aprendizagem. Mas o que fazer para mudar aquela situação, isso tem que vir mesmo da experiência daquele professor, da relação que ele mantém com seus alunos. Educar é um processo dialético”, explica.  

O papel do professor não se confunde com o do psicólogo ou psiquiatra, mas como o aprender envolve as emoções, ou seja, é preciso ter sensibilidade para as questões emocionais. Da mesma forma, um professor deve estar atento a problemas físicos e deve encaminhar a um oftalmologista uma criança que precisa enxergar bem para ser capaz de aprender a ler e escrever.  

Ter o cuidado de entender como os processos cerebrais interferem na aprendizagem, portanto, aproxima o professor da sua função primordial de educar.

“O professor não precisa ser médico, mas se o aluno mostra sinais de uma patologia que dificulta a aprendizagem, o professor precisa identificar e encaminhar. Vale para a saúde física e mental. O professor não é o responsável pela saúde, mas por fatores de proteção”, afirma a diretora do NeuroConecte.  

O principal para os professores é entender que o cérebro se modifica, se reorganiza, se renova; fenômeno chamado plasticidade cerebral, pontua a neuropsicóloga Adriana Fóz (Foto: Arquivo pessoal)

Adriana Fóz reconhece que o excesso de preocupação com os caminhos do cérebro pode até atrapalhar na rotina. “A situação de aprendizagem no espaço escolar tem uma especificidade, que se dá naquele momento, e que não deve ter excesso de preocupação de como funciona os processos de aprendizagem”, diz. 

Segundo ela, o principal para os professores é entender que o cérebro se modifica, se reorganiza, se renova; fenômeno chamado plasticidade cerebral. “O cérebro é plástico quando se desenvolve na infância, na adolescência e sempre que se aprende. Essa última forma de mudar o cérebro é a vocação da educação”, explica.  

Portanto, na prática docente, não é necessário entender o papel da dopamina no sistema de recompensa, defende Adriana. “Há professores que se interessam, mas nenhum precisa saber detalhadamente dos mecanismos. O que é interessante — e o que ajuda no dia a dia — é o professor entender, por exemplo, que o adolescente vai ter menos sensação de prazer, que a emoção do adolescente suprime a capacidade de decisão. Quando briga, quando sofre alguma ameaça, quando se sente péssimo por algum motivo, não vai conseguir pensar na prova”, exemplifica. 

Para não precisar se tornar um especialista em cérebro e ainda assim ser capaz de ‘dar a volta toda’ e entender o que se passa no processo de ensino e aprendizagem sob diversos ângulos, o caminho para os professores deve incluir formações de qualidade. “Temos visto uma explosão de cursos, vários sites, páginas no Instagram, e muita porcaria. O processo de formação docente nessa área precisa ser muito cuidadoso, valorizar a experiência que os professores já têm, e ser orientado por profissionais sérios”, aconselha Adriana.  

Fonte:

Revista Educação: referência há 28 anos em reportagens jornalísticas e artigos exclusivos para profissionais da educação básica

Revista Educação

segunda-feira, 18 de março de 2024

SIM, A QUÍMICA NOS ALIMENTOS.

                        
                                          Photo: "Nitrogen Fertilizer" by eutrophication&hypoxia is licensed under CC BY 2.0

Química é a ciência que estuda a matéria e suas transformações. Ou seja, quase tudo que acontece no universo é objeto de estudo dessa nobre disciplina pertencente às “ciências naturais”. Porém, ainda é comum usar a palavra química como algo maléfico ou em oposição a natural. Se algo não possui química, não existe.

Nos alimentos, a Química estuda sua composição, degradação, preservação e a forma como é absorvida por seres vivos, misturando-se à Biologia, resultando em um campo mais específico do saber: a Bioquímica. Recentemente foram feitos alertas em relação à forma exagerada como alimentos têm sido processados em larga escala, os chamados ultraprocessados. Eles contêm quantidades muito grandes de sais minerais (especialmente na forma de sais de sódio), gorduras, açúcares e outros aditivos de preservação. Sem contar que muitos perdem seus valores nutricionais e consistência ao longo das etapas de processamento.

Assim, um necessário alerta que deve ser feito, especialmente a articulistas sabichões de jornais da capital paulista, é que ultraprocessado não é sinônimo de tudo o que tem “adição de produtos químicos”. Sal e açúcar para alterar ou intensificar o sabor são produtos químicos, da mesma forma que é produto químico a água que é colocada para cozinhar arroz e feijão. A distinção deve ser feita de outra maneira, pela adição de substâncias que não sejam as já constantes em alimentos de forma geral e, principalmente, pela intensidade e quantidade com que são adicionados. Alerta e denúncias devem ser feitos, mas a Química deve ser preservada, pois, afinal de contas, é a ciência que pode resolver a questão da qualidade alimentar.


Adilson Roberto Gonçalves, pesquisador da Unesp, membro da Academia Campineira de Letras e Artes, da Academia de Letras de Lorena, do Instituto de Estudos Valeparaibanos e do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Campinas.

Fonte: 

PRAVDA RÚSSIA


quinta-feira, 28 de setembro de 2023

ESCOLAS PODEM USAR VERBAS DE MANUTENÇÃO DO ENSINO EM FEIRAS DE CIÊNCIAS - JÁ ESTÁ NA LDB!

Alexandre Lombardi/Agência Sorocaba

O presidente em exercício, Geraldo Alckmin, sancionou lei que amplia as possibilidades de uso dos recursos para educação em atividades curriculares complementares. A Lei 14.560, de 2023, foi publicada nesta quinta-feira (27/04/2023) no Diário Oficial da União (DOU). Pelo texto, as escolas públicas poderão usar verbas classificadas como "despesas de manutenção e desenvolvimento do ensino" com exposições, feiras ou mostras de ciências.

Antes da sanção da norma, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB - Lei 9.394, de 1996) restringia o uso desses recursos como forma de evitar fraudes, só permitindo a destinação para atividades consideradas básicas, como remuneração, aquisição de material didático-escolar, manutenção de instalações e equipamentos.

A autora da lei agora sancionada foi a senadora Professora Dorinha Seabra (União-TO), que não concordava com o fato de órgãos de controle externo questionarem os gastos de escolas com a realização de feiras de ciências, matemática, literatura e cultura. Ela apresentou o projeto (PLC 162/2015 no Senado)quando ainda era deputada.

Aprovado em 2016 pela Comissão de Educação (CE), com emenda da relatora, a então senadora Simone Tebet, a mudança ampliou a definição de atividades complementares voltadas ao aprendizado dos alunos ou à formação continuada dos profissionais da educação. Quando o projeto foi aprovado no Plenário do Senado em 29 de março de 2023, Dorinha defendeu a retomada do texto original, aprovado pela Câmara, o que foi garantido com a rejeição da emenda da CE.

Dorinha disse que o artigo da LDB enumera as despesas de manutenção e desenvolvimento do ensino que podem receber recursos federais. Mas a versão aprovada pela CE, segundo ela, deixava o "texto amplo", sem a definição das atividades que poderiam ser contempladas com a verba, o que poderia trazer riscos para os gestores.

— Esse projeto trata do artigo especifico da LDB do que é permitido utilizar de recursos no desenvolvimento do ensino. Os textos originais têm uma delimitação muito clara, pensando sobretudo numa escola com tempo integral. Ocorre que a emenda apresentada deixava o alcance muito amplo — apontou.

A preocupação de Professora Dorinha convergiu com a de outros senadores, como Flávio Arns (PSB-PR), Izalci Lucas (PSDB-DF) e Teresa leitão (PT-PE).

— A LDB, de forma muito didática, diz o que é manutenção e desenvolvimento de ensino e diz o que não é. Muito gestor de boa-fé ao apresentar os gastos da educação pode fazer alguma coisa que não está explicitamente citado na lei. O projeto dá mais segurança ao gestor ao dizer exatamente do que se trata  — reforçou Teresa Leitão.

Fonte:

LDB Câmara

Agência Senado

Normas Leg.

terça-feira, 19 de setembro de 2023

LEIA A ÍNTEGRA DO DISCURSO DE LULA NA ASSEMBLEIA-GERAL DA ONU

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Leia a íntegra do discurso do presidente Lula na 78ª Assembleia-Geral da ONU, em Nova York, nesta terça-feira (19). Seguindo a tradição, o Brasil abre anualmente uma das mais importantes reuniões de líderes mundiais.

Meus cumprimentos ao Presidente da Assembleia Geral, embaixador Dennis Francis, de Trinidad e Tobago. É uma satisfação ser antecedido pelo secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres. Saúdo cada um dos chefes de Estado e de governo e delegadas e delegados presentes.

Presto minha homenagem ao nosso compatriota Sérgio Vieira de Mello e 21 outros funcionários desta organização, vítimas do brutal atentado em Bagdá, há 20 anos. Desejo igualmente expressar minhas condolências às vítimas do terremoto no Marrocos e das tempestades que atingiram a Líbia.

A exemplo do que ocorreu recentemente no estado do Rio Grande do Sul, no meu país, essas tragédias ceifam vidas e causam perdas irreparáveis. Nossos pensamentos e orações estão com todas as vítimas e seus familiares.

Senhoras e senhores, há vinte anos, ocupei esta tribuna pela primeira vez.

E disse, naquele 23 de setembro de 2003:

"Que minhas primeiras palavras diante deste Parlamento Mundial sejam de confiança na capacidade humana de vencer desafios e evoluir para formas superiores de convivência"

Volto hoje para dizer que mantenho minha inabalável confiança na humanidade.

Naquela época, o mundo ainda não havia se dado conta da gravidade da crise climática.

Hoje, ela bate às nossas portas, destroi nossas casas, nossas cidades, nossos países, mata e impõe perdas e sofrimentos a nossos irmãos, sobretudo os mais pobres.

A fome, tema central da minha fala neste Parlamento Mundial 20 anos atrás, atinge hoje 735 milhões de seres humanos, que vão dormir esta noite sem saber se terão o que comer amanhã.

O mundo está cada vez mais desigual.

Os 10 maiores bilionários possuem mais riqueza que os 40% mais pobres da humanidade.

O destino de cada criança que nasce neste planeta parece traçado ainda no ventre de sua mãe.

A parte do mundo em que vivem seus pais e a classe social à qual pertence sua família irão determinar se essa criança terá ou não oportunidades ao longo da vida.

Se irá fazer todas as refeições ou se terá negado o direito de tomar café da manhã, almoçar e jantar diariamente.

Se terá acesso à saúde, ou se irá sucumbir a doenças que já poderiam ter sido erradicadas.

Se completará os estudos e conseguirá um emprego de qualidade, ou se fará parte da legião de desempregados, subempregados e desalentados que não para de crescer.

É preciso antes de tudo vencer a resignação, que nos faz aceitar tamanha injustiça como fenômeno natural.

Para vencer a desigualdade, falta vontade política daqueles que governam o mundo.

Senhores e senhoras

Se hoje retorno na honrosa condição de presidente do Brasil, é graças à vitória da democracia em meu país.

A democracia garantiu que superássemos o ódio, a desinformação e a opressão.

A esperança, mais uma vez, venceu o medo.

Nossa missão é unir o Brasil e reconstruir um país soberano, justo, sustentável, solidário, generoso e alegre.

O Brasil está se reencontrando consigo mesmo, com nossa região, com o mundo e com o multilateralismo.

Como não me canso de repetir, o Brasil está de volta.

Nosso país está de volta para dar sua devida contribuição ao enfrentamento dos principais desafios globais.

Resgatamos o universalismo da nossa política externa, marcada por diálogo respeitoso com todos.

A comunidade internacional está mergulhada em um turbilhão de crises múltiplas e simultâneas: a pandemia da Covid-19; a crise climática; e a insegurança alimentar e energética ampliadas por crescentes tensões geopolíticas.

O racismo, a intolerância e a xenofobia se alastraram, incentivadas por novas tecnologias criadas supostamente para nos aproximar.

Se tivéssemos que resumir em uma única palavra esses desafios, ela seria desigualdade.

A desigualdade está na raiz desses fenômenos ou atua para agravá-los.

A mais ampla e mais ambiciosa ação coletiva da ONU voltada para o desenvolvimento – a Agenda 2030 – pode se transformar no seu maior fracasso.

Estamos na metade do período de implementação e ainda distantes das metas definidas.

A maior parte dos objetivos de desenvolvimento sustentável caminha em ritmo lento.

O imperativo moral e político de erradicar a pobreza e acabar com a fome parece estar anestesiado.

Nesses sete anos que nos restam, a redução das desigualdades dentro dos países e entre eles deveria se tornar o objetivo-síntese da Agenda 2030.

Reduzir as desigualdades dentro dos países requer incluir os pobres nos orçamentos nacionais e fazer os ricos pagarem impostos proporcionais ao seu patrimônio.

No Brasil, estamos comprometidos a implementar todos os 17 objetivos de desenvolvimento sustentável, de maneira integrada e indivisível.

Queremos alcançar a igualdade racial na sociedade brasileira por meio de um décimo oitavo objetivo que adotaremos voluntariamente.

Lançamos o plano Brasil sem Fome, que vai reunir uma série de iniciativas para reduzir a pobreza e a insegurança alimentar.

Entre elas, está o Bolsa Família, que se tornou referência mundial em programas de transferência de renda para famílias que mantêm suas crianças vacinadas e na escola.

Inspirados na brasileira Bertha Lutz, pioneira na defesa da igualdade de gênero na Carta da ONU, aprovamos a lei que torna obrigatória a igualdade salarial entre mulheres e homens no exercício da mesma função.

Combateremos o feminicídio e todas as formas de violência contra as mulheres.

Seremos rigorosos na defesa dos direitos de grupos LGBTQI+ e pessoas com deficiência.

Resgatamos a participação social como ferramenta estratégica para a execução de políticas públicas.

Senhor presidente

Agir contra a mudança do clima implica pensar no amanhã e enfrentar desigualdades históricas.

Os países ricos cresceram baseados em um modelo com altas taxas de emissões de gases danosos ao clima.

A emergência climática torna urgente uma correção de rumos e a implementação do que já foi acordado.

Não é por outra razão que falamos em responsabilidades comuns, mas diferenciadas.

São as populações vulneráveis do Sul Global as mais afetadas pelas perdas e danos causados pela mudança do clima.

Os 10% mais ricos da população mundial são responsáveis por quase a metade de todo o carbono lançado na atmosfera.

Nós, países em desenvolvimento, não queremos repetir esse modelo.

No Brasil, já provamos uma vez e vamos provar de novo que um modelo socialmente justo e ambientalmente sustentável é possível.

Estamos na vanguarda da transição energética, e nossa matriz já é uma das mais limpas do mundo.

87% da nossa energia elétrica provem de fontes limpas e renováveis.

A geração de energia solar, eólica, biomassa, etanol e biodiesel cresce a cada ano.

É enorme o potencial de produção de hidrogênio verde.

Com o Plano de Transformação Ecológica, apostaremos na industrialização e infraestrutura sustentáveis.

Retomamos uma robusta e renovada agenda amazônica, com ações de fiscalização e combate a crimes ambientais.

Ao longo dos últimos oito meses, o desmatamento na Amazônia brasileira já foi reduzido em 48%.

O mundo inteiro sempre falou da Amazônia. Agora, a Amazônia está falando por si.

Sediamos, há um mês, a Cúpula de Belém, no coração da Amazônia, e lançamos nova agenda de colaboração entre os países que fazem parte daquele bioma.

Somos 50 milhões de sul-americanos amazônidas, cujo futuro depende da ação decisiva e coordenada dos países que detêm soberania sobre os territórios da região.

Também aprofundamos o diálogo com outros países detentores de florestas tropicais da África e da Ásia.

Queremos chegar à COP 28 em Dubai com uma visão conjunta que reflita, sem qualquer tutela, as prioridades de preservação das bacias Amazônica, do Congo e do Bornéu-Mekong a partir das nossas necessidades.

Sem a mobilização de recursos financeiros e tecnológicos não há como implementar o que decidimos no Acordo de Paris e no Marco Global da Biodiversidade.

A promessa de destinar 100 bilhões de dólares – anualmente – para os países em desenvolvimento permanece apenas isso, uma promessa.

Hoje esse valor seria insuficiente para uma demanda que já chega à casa dos trilhões de dólares.

Senhor presidente

O princípio sobre o qual se assenta o multilateralismo – o da igualdade soberana entre as nações – vem sendo corroído.

Nas principais instâncias da governança global, negociações em que todos os países têm voz e voto perderam fôlego.

Quando as instituições reproduzem as desigualdades, elas fazem parte do problema, e não da solução.

No ano passado, o FMI disponibilizou 160 bilhões de dólares em direitos especiais de saque para países europeus, e apenas 34 bilhões para países africanos.

A representação desigual e distorcida na direção do FMI e do Banco Mundial é inaceitável.

Não corrigimos os excessos da desregulação dos mercados e da apologia do Estado mínimo.

As bases de uma nova governança econômica não foram lançadas.

O BRICS surgiu na esteira desse imobilismo, e constitui uma plataforma estratégica para promover a cooperação entre países emergentes.

A ampliação recente do grupo na Cúpula de Joanesburgo fortalece a luta por uma ordem que acomode a pluralidade econômica, geográfica e política do século 21.

Somos uma força que trabalha em prol de um comércio global mais justo num contexto de grave crise do multilateralismo.

O protecionismo dos países ricos ganhou força e a Organização Mundial do Comércio permanece paralisada, em especial o seu sistema de solução de controvérsias.

Ninguém mais se recorda da Rodada do Desenvolvimento de Doha.

Nesse ínterim, o desemprego e a precarização do trabalho minaram a confiança das pessoas em tempos melhores, em especial os jovens.

Os governos precisam romper com a dissonância cada vez maior entre a "voz dos mercados" e a "voz das ruas".

O neoliberalismo agravou a desigualdade econômica e política que hoje assola as democracias.

Seu legado é uma massa de deserdados e excluídos.

Em meio aos seus escombros surgem aventureiros de extrema direita que negam a política e vendem soluções tão fáceis quanto equivocadas.

Muitos sucumbiram à tentação de substituir um neoliberalismo falido por um nacionalismo primitivo, conservador e autoritário.

Repudiamos uma agenda que utiliza os imigrantes como bodes expiatórios, que corrói o Estado de bem-estar e que investe contra os direitos dos trabalhadores.

Precisamos resgatar as melhores tradições humanistas que inspiraram a criação da ONU.

Políticas ativas de inclusão nos planos cultural, educacional e digital são essenciais para a promoção dos valores democráticos e da defesa do Estado de Direito.

É fundamental preservar a liberdade de imprensa.

Um jornalista, como Julian Assange, não pode ser punido por informar a sociedade de maneira transparente e legítima.

Nossa luta é contra a desinformação e os crimes cibernéticos.

Aplicativos e plataformas não devem abolir as leis trabalhistas pelas quais tanto lutamos.

Ao assumir a presidência do G20 em dezembro próximo, não mediremos esforços para colocar no centro da agenda internacional o combate às desigualdades em todas as suas dimensões.

Sob o lema "Construindo um Mundo Justo e um Planeta Sustentável", a presidência brasileira vai articular inclusão social e combate à fome; desenvolvimento sustentável e reforma das instituições de governança global.

Senhor presidente,

Não haverá sustentabilidade nem prosperidade sem paz.

Os conflitos armados são uma afronta à racionalidade humana.

Conhecemos os horrores e os sofrimentos produzidos por todas as guerras.

A promoção de uma cultura de paz é um dever de todos nós. Construí-la requer persistência e vigilância.

É perturbador ver que persistem antigas disputas não resolvidas e que surgem ou ganham vigor novas ameaças.

Bem o demonstra a dificuldade de garantir a criação de um Estado para o povo palestino.

A este caso se somam a persistência da crise humanitária no Haiti, o conflito no Iêmen, as ameaças à unidade nacional da Líbia e as rupturas institucionais em Burkina Faso, Gabão, Guiné-Conacri, Mali, Níger e Sudão.

Na Guatemala, há o risco de um golpe, que impediria a posse do vencedor de eleições democráticas.

A guerra da Ucrânia escancara nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e princípios da Carta da ONU.

Não subestimamos as dificuldades para alcançar a paz.

Mas nenhuma solução será duradoura se não for baseada no diálogo.

Tenho reiterado que é preciso trabalhar para criar espaço para negociações.

Investe-se muito em armamentos e pouco em desenvolvimento.

No ano passado os gastos militares somaram mais de 2 trilhões de dólares.

As despesas com armas nucleares chegaram a 83 bilhões de dólares, valor vinte vezes superior ao orçamento regular da ONU.

Estabilidade e segurança não serão alcançadas onde há exclusão social e desigualdade.

A ONU nasceu para ser a casa do entendimento e do diálogo.

A comunidade internacional precisa escolher:

De um lado, está a ampliação dos conflitos, o aprofundamento das desigualdades e a erosão do Estado de Direito.

De outro, a renovação das instituições multilaterais dedicadas à promoção da paz.

As sanções unilaterais causam grande prejuízos à população dos países afetados.

Além de não alcançarem seus alegados objetivos, dificultam os processos de mediação, prevenção e resolução pacífica de conflitos.

O Brasil seguirá denunciando medidas tomadas sem amparo na Carta da ONU, como o embargo econômico e financeiro imposto a Cuba e a tentativa de classificar esse país como Estado patrocinador de terrorismo.

Continuaremos críticos a toda tentativa de dividir o mundo em zonas de influência e de reeditar a Guerra Fria.

O Conselho de Segurança da ONU vem perdendo progressivamente sua credibilidade.

Essa fragilidade decorre em particular da ação de seus membros permanentes, que travam guerras não autorizadas em busca de expansão territorial ou de mudança de regime.

Sua paralisia é a prova mais eloquente da necessidade e urgência de reformá-lo, conferindo-lhe maior representatividade e eficácia.

Senhoras e senhores

A desigualdade precisa inspirar indignação.

Indignação com a fome, a pobreza, a guerra, o desrespeito ao ser humano.

Somente movidos pela força da indignação poderemos agir com vontade e determinação para vencer a desigualdade e transformar efetivamente o mundo a nosso redor.

A ONU precisa cumprir seu papel de construtora de um mundo mais justo, solidário e fraterno.

Mas só o fará se seus membros tiverem a coragem de proclamar sua indignação com a desigualdade e trabalhar incansavelmente para superá-la.

Muito obrigado.

Fonte:

MSN