A polêmica por
trás do estudo que indica Botsuana como berço da humanidade.
Um artigo
publicado na revista Nature na última segunda-feira (29) está dando o que falar
entre especialistas da comunidade científica. O estudo indica o sul da África
como o local exato do surgimento da humanidade — e muitos outros cientistas
acreditam que, com as informações que temos hoje, não é possível tirar
conclusões tão precisas assim.
Vanessa Hayes,
da Universidade de Sidney, na Austrália, liderou uma equipe de especialistas
que analisou o código genético 1217 pessoas da África Meridional (a parte sul
do continente) e criou uma árvore genealógica. Cruzando esses dados com
informações de outros estudos, os cientistas concluíram que os humanos modernos
se originaram nas zonas úmidas em Makgadikgadi, no nordeste de Botsuana.
"Já ficou
claro há algum tempo que humanos anatomicamente modernos apareceram na África
cerca de 200 mil anos atrás. Há muito se debate a localização exata desse
surgimento e a subsequente dispersão de nossos ancestrais mais antigos",
afirmou a especialista, em comunicado à imprensa.
Os
especialistas explicam que analisaram o DNA mitocondrial das células dos
voluntários. Essa organela é transmitida diretamente da mãe para o bebê. Isso
significa que, seguindo a "linhagem" genética, é possível descobrir
as origens de alguém baseando-se apenas nessa informação.
Para fazer
isso, os estudiosos mesclaram 198 mitogenomas (DNAs mitocondriais) atuais com
informações genéticas da primeira linhagem conhecida de humanos modernos, a L0.
"Isso nos permitiu refinar a árvore evolutiva de nossos primeiros ramos
ancestrais melhor do que nunca”, explicou Eva Chan, do Garvan Institute of
Medical Research, que liderou as análises filogenéticas.
Foi
relacionando essas descobertas com as evidências geológicas, arqueológicas e fósseis
existentes que os especialistas concluíram que a origem dos humanos modernos se
deu em algum lugar próximo do Lago Makgadikgadi. “O lago havia começado a
drenar devido a mudanças nas placas tectônicas subjacentes. Isso criaria um
vasto pantanal, conhecido por ser um dos ecossistemas mais produtivos para
sustentar a vida”, observa o geologista Andy Moore, que também participou do
estudo.
Migrações
Segundo o
artigo publicado na Nature, o clima da região possibilitou que a humanidade
prosperasse ali por cerca de 70 mil anos, quando ondas de migração tiveram
início. “Os primeiros migrantes se aventuraram no nordeste, seguidos por uma
segunda onda de migrantes que viajaram para o sudoeste. Uma terceira população
permaneceu na terra natal [e está lá] até hoje", explicou Hayes.
Enquanto os
autores especulam que os habitantes da região permaneceram lá porque
conseguiram de adaptar, eles não sabem ao certo por que uma parte dos nossos
ancestrais resolveu migrar. Axel Timmermann, da Universidade Nacional de Busan,
na Coreia do Sul, acredita que isso ocorreu por conta de mudanças climáticas.
De acordo com
Timmermann, que também fez parte da nova pesquisa, a lenta oscilação do eixo da
Terra altera a radiação solar no verão no Hemisfério Sul, o que leva a mudanças
periódicas nas chuvas no sul da África. Esse fator teria resultado em mudanças
climáticas naquela época, criando um "corredor de vegetação", que
viabilizou a vida em outras regiões.
Polêmica
Descobrir o
"berço" da humanidade é um sonho dos evolucionistas há muito tempo —
e justamente por isso o artigo da Nature está dando o que falar entre outros
membros da comunidade científica. Para eles, um estudo que observa apenas uma
parcela do DNA de pessoas vivas não é o suficiente para conclusões tão incisivas
sobre a origem dos seres humanos modernos.
Em entrevista
à revista Science, Aylwyn Scally, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido,
explica que rastrear apenas o DNA mitocondrial pode gerar muitas imprecisões,
pois desconsidera a evolução de fatores genéticos herdados dos pais. Para ele,
se isso tivesse sido analisado, as respostas do estudo poderiam ser muito
diferentes.
"Estou
convencido de que o sul da África é uma área importante para a evolução
humana", disse o geneticista, que não fez parte da pesquisa. "[Mas]
seria surpreendente se toda a nossa ascendência genética neste momento tivesse
surgido de uma pequena região."
Quando
questionada sobre isso, Hayes explicou que a equipe escolheu avaliar apenas o
DNA mitocondrial porque ele não é alterado durante o desenvolvimento fetal,
diferentemente de outros fatores genéticos. "Funciona como uma cápsula do
tempo para nossas mães ancestrais. A maioria dos dados sobre os cromossomos Y
[masculinos] dos moradores da região desapareceu quando os homens se misturaram
com outros grupos", apontou a especialista.
Ainda assim,
especialistas como a arqueóloga Eleanor Scerri, do Instituto Max Planck,
acredita que o artigo ignora um fator crucial: os registros fósseis e os
artefatos arqueológicos encontrados em outras partes do mundo que têm a mesma
idade da população que teria surgido em Botsuana. "Esse estudo ignora uma
série de evidências que sustentam uma origem mais antiga de nossa
espécie", disse a pesquisadora ao The Atlantic.
Carina
Schlebusch, geneticista da Universidade de Uppsala, na Suécia, concorda com
Scerri. Ela descreveu as alegações da equipe como "exageradas" e
disse que os resultados publicados na Nature dizem muito pouco sobre as origens
da humanidade como um todo. "A pesquisa só nos fala sobre a origem de uma
parte muito pequena do genoma humano e nada mais”, afirmou ao The Atlantic.
Resto do mundo
Os protestos
dos especialistas que não fizeram parte do estudo fazem sentido, principalmente
considerando descobertas arqueológicas recentes. Em 2017, por exemplo, ossos de
315 mil anos foram encontrados no Marrocos.
Pouco tempo
depois, um maxilar de 180 mil anos foi encontrado na caverna Misliya, em
Israel. Para os pesquisadores que participaram da descoberta, isso indica que
os seres humanos saíram da África muito antes do que imaginávamos.
Uma descoberta
de 2019 corrobora a hipótese: restos mortais de um Homo Sapiens de 210 mil anos
foram encontrados na Grécia, sugerindo que a espécie de espalhou muito antes do
que no período proposto pela equipe de Hayes.
Para Eleanor
Scerri, é impossível basear toda a história da humanidade em respostas
genéticas, pois elas "representam uma pequena fração da ancestralidade
humana", disse em entrevista. "Reconstruir nossa ancestralidade
profunda com DNA mitocondrial é como tentar reconstruir um idioma inteiro a
partir de algumas palavras."
Passado conturbado
Essa não é a
primeira vez que um estudo de Vanessa Hayes é questionado. Em 2010, ela
publicou o genoma completo de quatro anciões da Namíbia, em uma tentativa de
aumentar a representação do sul da África na pesquisa genética. Entretanto, uma
ONG chamada Grupo de Trabalho de Minorias Indígenas na África Austral (WIMSA,
na sigla em inglês) acusou sua equipe de "arrogância absoluta, ignorância
e miopia cultural".
Enquanto a
equipe de Hayes se defendeu dizendo que os homens haviam consentido o uso de
seu DNA, os ativistas questionaram a eficácia desse consentimento e acusaram a
equipe de usar termos pejorativos em seu estudo.
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