Nomadland
Reflexões sobre trabalho e previdência nos EUA
Estados Unidos estão longe de ser o ‘paraíso da classe trabalhadora
O filme “Nomadland” foi o grande vencedor do Oscar 2021, com uma trinca de respeito: melhor filme, melhor direção e melhor atriz. Para além de seus evidentes méritos artísticos, dentre os quais o fato de contar com alguns personagens não atores que interpretam magistralmente a si mesmos, a película merece ser assistida por quem estiver interessado em conhecer alguns dos dramas da classe trabalhadora americana no século XXI.
O filme é particularmente elucidativo e didático para aqueles supostos liberais brasileiros que acreditam que os EUA possuem um modelo “ideal” de relações de trabalho, motivo pelo qual, acreditam esses incautos, “todo mundo quer imigrar para lá”. A verdade crua é que a realidade dos trabalhadores americanos no século XXI está muito longe dos confortos que a estabilidade de um emprego lhes conferia 40 anos atrás, quando ter um trabalho formal significava integrar a classe média, com direito a uma boa casa financiada a juros baixos, carro novo na garagem e filho na universidade.
A personagem principal, Fern, interpretada pela grande atriz Frances McDormand (que despontou para o estrelato em “Fargo”, de 1996, sendo também a produtora do filme), é uma trabalhadora de escritório em uma mina de calcário que encerrou suas atividades depois de cem anos no estado de Nevada, durante a crise dos subprime. Seu marido trabalhava na mesma instalação e faleceu pouco antes do fechamento da empresa. O casal morava em uma agradável “vila operária” construída pela companhia, a qual também deixou de existir com o fim da empresa. Até o CEP local foi cancelado pelo governo…
Assim, de um golpe só, Fern perde tudo: o marido, o emprego, a casa e o endereço. Ela precisa guardar seus pertences em um depósito e passa a viver dentro de uma van. Aqui nos deparamos com uma realidade cruel do sistema de proteção social dos EUA. Embora tenha trabalhado durante toda sua vida, aos 60 anos Fern não tem renda suficiente para manter uma moradia digna e encontra dificuldade até para os gastos com seu veículo.
Ela obtém então um emprego temporário como trabalhadora manual, em um descomunal galpão de logística da Amazon, no mesmo estado de Nevada. O contraste com o “velho e bom emprego industrial” é flagrante, a começar pelo fato de que o trabalho é precário, apenas para o período de festas de fim de ano. Não há perspectivas de crescimento ou integração social com os demais trabalhadores e, muito menos, representação de sindicatos. O antigo trabalho na antiga mina de calcário proporcionava a Fern algo que em geral não entra na conta dos economistas: sociabilidade e solidariedade.
Findo o contrato na Amazon, Fern passa a integrar o contigente imenso de Trabalhadores Descartáveis da América. Depois de assistir a um filme de Bob Wells, um líder algo messiânico dos “nômades” dos Estados Unidos (um personagem da vida real), Fern decide levar uma vida errante pelas estradas do grande deserto americano que vai do Arizona à Dakota do Sul, pulando de um a outro emprego temporário, recebendo salários baixos e vivendo em acampamentos de vans.
Os acampamentos de “nômades” dos Estados Unidos acabam funcionando para os Trabalhadores Descartáveis da América como um possível espaço para restabelecer vínculos comunitários que o trabalho já não mais permite, através de uma rede de solidariedade e de trocas de pequenos bens e serviços.
Bob Wells parece querer desenvolver uma filosofia de vida minimalista, diante da “tirania do dólar”. Embora não se constitua propriamente em um movimento político, o estilo de vida nômade, que tem crescido muito nos EUA, é sem dúvida uma forma de contestação a um sistema de trabalho cada vez mais excludente. De acordo com o escritório do Censo dos EUA, em 2019 140 mil americanos declararam viver no seu automóvel. Esse número era de 102 mil em 2016, ou seja, um crescimento de aproximadamente 40% em apenas três anos.
“Nomadland” suscita reflexões políticas em um momento oportuno, quando muitos acreditam que a Revolução Digital melhorará a vida de todos, inclusive da classe trabalhadora. Como todas as demais etapas da Revolução Industrial, esta provocará progresso e também sofrimento, principalmente para quem está fora do sistema. E o filme nos lembra que ter um trabalho precário hoje nos Estados Unidos não garante sequer que você está dentro do sistema.
Matéria original em:
Texto de:
CÁSSIO CASAGRANDE – Doutor em Ciência Política, professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.
Parece ser um bom filme, vou conferir...
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