Foi de lá que ele
voltou há quatro meses, a convite de Jorge Kalil, referência em pesquisas de
vacinas, para desenvolver sua pesquisa no Incor. Quando viu as primeiras
notícias sobre o novo coronavírus, Cabral não imaginava que precisaria adaptar
sua metodologia de trabalho —focada em chikungunya e
estreptococos— para desenvolver uma vacina para a covid-19. “À princípio,
imaginei que o vírus se concentraria na China, já que existe um sistema de
vigilância global. Foi o que aconteceu com o ebola, por exemplo, que não se espalhou. Quando, em fevereiro,
às vésperas do Carnaval, o vírus continuava se expandido, pensei ‘agora,
ferrou”, diz ele, em bom baianês.
Agora, Cabral e sua
equipe trabalham incessantemente enquanto a sociedade espera uma bala de prata
contra a pandemia. Ao mesmo tempo, ele reflete —e critica— as políticas
de investimento em educação, ciência e tecnologia. “Sabe quando há interesse em
investir em ciência e tecnologia para criar balas mágicas? Quando afeta países
e classes abastados. O zika vírus,
por exemplo, é conhecido desde a década de 1950, mas nunca tinha sido muito
estudado. Despertou interesse público quando afetou grandes países
[entre 2014 e 2015]. E é que ciência é uma coisa muito cara, quem diz que se
faz ciência apenas com boa gestão não sabe do que está falando”, afirma em
entrevista ao EL PAÍS.
Ainda durante a
graduação, o imunologista montou um projeto de pesquisa para trabalhar
com comunidades quilombolas e doenças parasitárias,
investigando como os fatores socioambientais impactavam a evolução desses
problemas. A milhares de quilômetros do sertão, é ainda nas pessoas mais
vulneráveis que ele pensa enquanto desenvolve seu trabalho. “Se o coronavírus causou
tanto estrago em países de primeiro mundo, com melhores estruturas sociais e
econômicas, o que vai fazer quando adentrar fortemente as comunidades mais
vulneráveis do Brasil, os interiores, as favelas? Quando vejo pessoas na rua, penso nesses mais
vulneráveis e me pergunto se elas não têm empatia”, diz.
Pergunta. Como funcionam as vacinas contra um vírus?
Resposta. O objetivo da vacina é fazer com o que o vírus seja
incapaz de induzir a doença na pessoa. É o que acontece, por exemplo, nas
vacinas contra a gripe. Podemos utilizar o vírus inteiro, apenas um pedaço
dele, um pedaço do DNA ou um pedaço da proteína desse vírus para colocá-lo no
corpo e fazer com que esse corpo reconheça como algo estranho e desencadeie uma
resposta imunológica. Quando nosso organismo ataca um corpo estranho, ele gera
uma memória imunológica, que faz com que criemos anticorpos contra esses vírus.
É o que fazemos com as vacinas. Para um vírus infectar uma célula, ele precisa
de algumas proteínas para acoplar-se a ela. Na vacina, podemos usar uma parte
dessa proteína e induzir o sistema imunológico a responder só a esse pedaço,
mas ele já não vai conseguir entrar na célula.
P. Qual a diferença entre o projeto do Incor e as
pesquisas feitas em outros países?
R. Antes de responder, é preciso dizer que cada país
ou empresa tem seus próprios interesses. Por exemplo, se uma empresa tem a
patente de uma metodologia, não importa que haja outra melhor, ela vai investir
totalmente naquela que vai gerar lucro. Aqui no Brasil já temos uma certa folga
em relação a isso. No Incor, trabalhamos sem essa pressão. Quando fui chamado
para liderar o projeto, a primeira coisa que expliquei foi que nossa prioridade
seria garantir uma vacina segura, já que não sabemos quase nada desse novo coronavírus. Vamos
privilegiar a segurança e a eficiência da vacina em vez da rapidez. Decidimos
não utilizar o material genético do vírus, porque não temos ainda informações
suficientes sobre ele. Utilizamos as metodologias que aprendi nos últimos cinco
anos na Inglaterra e na Suíça: em vez de usar o material genético do
coronavírus, trabalhamos com partículas dele que são responsáveis por entrar
nas células humanas. São as coroazinhas do vírus, chamadas de “proteína de
spike”. Juntamos esses fragmentos com partículas sintéticas, parecidas com
vírus, mas sem material genético, ou seja, ocos, para impedir multiplicação.
São os VLPs [da sigla em inglês Virus Like Particles], um emaranhado de
proteínas. Como os VLPs imitam um vírus, o sistema imunológico estranha e reage
tanto a essas partículas quanto ao pedaço do coronavírus colocado nelas.
P. Em que fase de desenvolvimento vocês estão?
R. Podemos considerar que estamos começando, por causa
da urgência da pandemia. Mas estamos muito adiantados no quesito da produção
intelectual, com a produção dos VLTs e das proteínas, a formulação da vacina já está bem adiantada. Os trabalhos in
vitro também estão adiantados e já estamos partindo para os testes pré-clínicos
em modelos animais nas próximas semanas. Com a corrida para ver quem cria a
vacina primeiro, alguns países querem pular da experimentação in vitro direto
para seres humanos, mas isso é uma loucura. Mesmo com todo o arcabouço teórico,
o corpo humano é muito complexo, sempre vai nos mostrar alguma surpresa. É
imprescindível testar antes em animais.
P. Se a pesquisa avançou tanto em pouco tempo, porque
se fala em até dois anos para que a vacina chegue ao mercado?
R. Quando se desenvolve uma vacina, é possível
adiantar a parte teórica com vários virologistas, infectologistas e
imunologistas. Essa parte técnica é rápida. Mas, quando partimos para a
experimentação em seres vivos, a coisa muda. Preciso pelo menos de 15 dias para
avaliar como o corpo do animal vai reagir. Analisamos essa reação e vamos
ajustando, de certa forma, a vacina até que ela seja totalmente eficiente.
Nisso vão um mês ou dois. Com os resultados, vamos experimentando em outros
modelos animais até que eles neutralizem o vírus a um ponto em que seja seguro
testar em seres humanos. Depois disso, vêm os estudos sobre a toxicidade da
vacina. Teremos que desenvolver uma enorme bateria de informações para
justificar o encaminhamento da vacina para os órgãos de análise específicos. Aí
entra a questão burocrática, que, devido à urgência, pode até correr rápido.
Mas a biologia, infelizmente, nós não podemos apressar. Para saber se o que deu
certo no animal vai funcionar em seres humanos, fazemos os estudos clínicos, em
que pegamos uma pequena quantidade da vacina para testar se há uma resposta
imunológica. Em caso positivo, testamos uma quantidade maior até que o vírus
seja neutralizado.
P. Apesar das diferentes abordagens em cada país, a
comunidade científica tem trocado informações sobre essas pesquisas?
R. Para mim, tanto faz se serei eu ou outro cientista
que vai criar primeiro a vacina, eu quero mais é que ela seja desenvolvida.
Mas, como pesquisador, e falando de forma realista, jamais trocarei informações
com uma empresa que não invista financeiramente no projeto. Entre cientistas,
sim, conversamos muito. Nossa equipe, por exemplo, trabalha muito com a Fiocruz
de Minas Gerais. É verdade que nós, pesquisadores, temos o ego grande, mas,
neste caso, estamos falando de salvar vidas humanas, então trocamos muitas
informações.
P. Uma vacina desenvolvida por um centro público de
pesquisa, como o Incor, vai de encontro aos interesses farmacêuticos?
R. Eu, pessoalmente, não estou nem aí se a pesquisa
vai de encontro a qualquer empresa. O que queremos é desenvolver uma vacina
extremamente eficaz e segura, que seja publicada e produzida.
P. O que uma pesquisa como essa, durante uma pandemia global,
evidencia sobre a necessidade de investimento público em educação e pesquisa?
R. A gente teve um pico de investimento em ciência e
tecnologia em 2004. Em 2014, o dinheiro público aplicado no setor foi para
níveis menores que 2004. E perder investimento em ciência e tecnologia é perder
também capacidade de vigilância em saúde. Tivemos um recente exemplo disso, com
a crise do zika vírus. Se tivéssemos aprendido a lição naquele momento, estaríamos
muito mais preparados para enfrentar o coronavírus agora. Cortar investimento é
algo tão obtuso, que as pessoas falam da importância econômica de economizar
verba pública sem lembrar que investimento em ciência, tecnologia e inovação
significa economia permanente. Se você produz conhecimento, a gente para de
importar insumos, produz internamente e ainda vamos importar. É o que acontece,
por exemplo, com o soro antiofídico, que o Brasil exporta para toda a América
Latina. Então, investir em ciência e tecnologia, sobretudo neste momento, é
estratégia econômica e de saúde pública.
Outra coisa é que
eu, por exemplo, se não tivesse bolsa de estudo, não teria condições de parar
de trabalhar e estudar e fazer pesquisa. Ou seja, se a gente para de investir,
perdemos o que temos de mais precioso, o talento humano.
P. Além da importância desse investimento, que outras
lições o Brasil poderia ter aprendido com a crise do zika vírus?
R. Países têm capacidade de se recuperar
economicamente até de uma guerra, mas não há recuperação de vida. Os
brasileiros que foram afetados, direta e indiretamente com a epidemia de
zika viverão para sempre com essas sequelas. Uma coisa que aquela
crise evidenciou foi a importância também da responsabilidade social, que,
naquele momento, tinha a ver com o combate ao Aedes aegypti. Hoje, tem a ver com a quarentena: não é responsabilidade
exclusiva das autoridades determinar que as pessoas fiquem em casa, essa é uma
obrigação de todos.
Há uma
responsabilidade também de pressão social. Depois que passou o pico do zika
vírus, todo o investimento na produção de uma vacina contra ele foi cortado. A
sociedade precisa entrar nesse jogo, porque daqui a menos de um ano a pandemia
de coronavírus não estará tão forte como agora, a vacina estará prestes a ser
testada em humanos e, se não houver pressão popular e política, o mesmo vai
acontecer, perderemos o investimento.
P. E quais aprendizados vão ficar depois da pandemia?
R. O melhor aprendizado é que ciência e sociedade têm
que andar juntas. Sem isso, continuaremos dependendo só de opiniões políticas
para decidir se tomar cloroquina contra um vírus ou não, por
exemplo. Isso não se faz com base em opiniões, diz respeito a uma questão
médica-científica. Se ficarmos no jogo político, todos vamos perder.
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