'Não quero ser o único negro em nenhum lugar', diz professor ofendido em SP.
Eduardo Schiavoni
Colaboração para o UOL, em Bauru (SP)
Um mundo no qual um negro não tenha o peso de ser o primeiro e não precise ser o único. Assim o jornalista e professor universitário Juarez Tadeu de Paula Xavier, 57, descreve a sociedade na qual gostaria de viver.
Alvo
de mensagens racistas
escritas por alunos da Unesp (Universidade Estadual Paulista) em
Bauru, no interior paulista, em julho de 2015, Xavier tenta não levar o racismo
como algo pessoal. "Acho que não foi uma crítica a mim, mas sim ao
coordenador do Nupe [Núcleo Negro da Unesp para Pesquisa e Extensão]."
Xavier
foi o único negro em sua sala durante a graduação, feita na PUC (Pontifícia
Universidade Católica) de São Paulo, no início da década de 1980.
Nos
anos 1990, foi o único negro no mestrado e o único no doutorado, ambos feitos
na USP (Universidade de São Paulo). Hoje, é o único professor negro no
Departamento de Comunicação Social da Unesp em Bauru, onde trabalha.
"Costumo
dizer que sou a manutenção da cota em vários lugares pelos quais passei. Em
muitos momentos, fui o único negro em muitas situações. Fui o primeiro negro a
entrar na faculdade na minha família, fui o primeiro a se doutorar. Hoje não,
temos mais doutores, mas eu era o único", lembra. "Tenho orgulho de
ter sido o primeiro, mas não quero ser o único. E desejo que nenhum negro
precise carregar o peso de nenhuma dessas situações", relata.
“É difícil achar um negro que
não tenha vivido constrangimento racial. Não é a primeira vez que sofro uma situação
semelhante na universidade. Hoje sou um homem velho, tenho
aprendido a reagir”
Juarez Xavier, professor da Unesp
Malavolta Jr./Unesp
O jornalista fala em evento sobre as ofensas recebidas na Unesp
Ele conta, porém, que vê uma "mudança
extraordinária" da década de 1980 para os dias atuais. "Estudei
durante a ditadura, e o estudante hoje tem uma chance de debater que nem sempre
existia. Na questão racional, o panorama era ainda mais restrito. Como exemplo,
fizemos um evento, em 1983, na PUC, para debater a experiência negra na
academia, mas não havia negros debatendo. Os debatedores eram os professores
Octávio Ianni e Florestan Fernandes, ambos brancos."
Um dicionário que
tirou do rumo do crime.
Quando fala sobre sua trajetória, o professor é econômico com as
palavras. Nascido na Vila Mazzei, zona norte da capital, é filho de um
caminhoneiro e uma empregada doméstica.
O pai foi preso nos anos 1960 e acabou morto em 1970. Com isso, teve de
abandonar a escola aos dez anos e só voltou a estudar depois dos 17.
"Nesse meio tempo, comigo ainda criança, minha mãe teve a sabedoria de
praticamente me internar em um centro de candomblé, e lá refiz minha
vida", conta.
O professor também lembra com carinho de seu Anísio, comerciante do
bairro que deu a ele a primeira oportunidade profissional. "Ele tinha uma
quitanda e me empregou, contra todas as expectativas e estatísticas. Ele também
era dono de uma banca de jornal e me colocou para trabalhar lá e me obrigava a
ler os jornais e revistas. Também me deu o primeiro livro, um dicionário de
língua portuguesa. Hoje tenho muitos livros, quase milhares, mas tenho um lugar
especial para esse", conta.
Dedicatória do 1º livro do professor: "Que este dicionário 'silva' para iluminar sua mente', assinada por seu amigo Anísio
"Seu Anísio me ajudou a não trilhar o caminho
do crime. Infelizmente, ele morreu nos anos 1970 sem eu poder mostrar que tinha
entrado na universidade. Gostaria de ter agradecido a ele."
Adolescente, deixou a Vila Mazzei e foi trabalhar em uma metalúrgica.
Lá, conheceu Milton Garcia, que o incentivou a voltar a estudar. "Fiz
supletivo do primeiro e do segundo grau. Depois, fiz um concurso para o INSS,
passei e comecei a trabalhar", diz.
"O Milton foi fundamental. Me instigava, perguntava se eu ia querer
ser peão a vida inteira. Não fosse ele, certamente eu não teria voltado a
estudar."
Sob a influência dele, fez o cursinho oferecido pela Escola Politécnica,
na USP, e prestou história, na própria USP, e jornalismo, na PUC. Optou pela
PUC. "O jornalismo falou mais alto. Durante a graduação, tive contato com
o movimento negro e militei no movimento estudantil. Mas saí devendo
parcelas", conta.
Dicionário de língua portuguesa presenteado pelo seu primeiro empregador tirou o professor Juarez do rumo do crime.
'Macaco'
De
fala serena e articulada, o professor, casado há mais de 20 anos e pai de uma
filha de 18 anos, prefere não levar para o campo pessoal as ofensas que sofreu.
Em julho de 2015, pouco depois da implantação do sistema de cotas na Unesp, ele
foi chamado de "macaco" em uma série de pichações racistas nos
banheiros da universidade.
Pelo
sistema, 15% das vagas da universidade são reservadas para pessoas de escola
pública e, dentre esses, 35% são de negros. A ideia é que, em 2018, esse total
chegue a 50%.
O
professor relata que, em sua concepção, a sociedade brasileira, incluindo a
universidade, privilegia uma classe média, branca, patrimonialista, urbana e
escolarizada e que as ofensas, por paradoxal, são um indicativo que mudanças
estão ocorrendo.
"Nas
universidades, esse é o perfil majoritário, mesmo não sendo esse o perfil
social brasileiro. É o que chamo de cota ao inverso. Quando isso começou a ser
mudado, as reações vieram. Passamos a ter alunos de escola pública e alunos
negros, que não existiam em alguns cursos. Isso criou uma situação nova na
universidade", disse.
Além
de Bauru, ele afirma que houve situações similares nos campi de Franca,
Ourinhos, Presidente Prudente, Marília, Assis e São Paulo. "Isso mostra
que é uma questão sistemática, não local. Paradoxalmente, em razão do sucesso
dessa política, temos reações. Temos que dar um tratamento legal, já que se
trata de um crime, e também pedagógico, para a universidade debater essa
situação."
Ele
ressalta ainda que a política de cotas, ainda que tenha causado reações,
mostrou-se "muito positiva". "As meninas e meninos que
ingressaram nos cursos tiveram bom desempenho e ampliou-se a diversidade
epistêmica nas pesquisas da universidade, o que é muito favorável ao
Brasil."
Ele
afirma, entretanto, que o racismo no Brasil é expresso de forma mais indireta.
"A pessoa não se sente confortável para expressar seu racismo. É um
racismo velado. A pessoa não enuncia o desconforto em estar em frente a um
negro, mas o olhar, o comportamento, o gesto, denunciam. É o segurar a bolsa,
não sentar ao lado, mudar de calçada. São mecanismos e mostram que o negro é
sujeito dessas ações."
Mas,
para o professor, a mudança de atitude do próprio negro, que passou a não
aceitar o preconceito, é a força motriz que ajuda a combater o racismo.
"Graças
à Constituição de 1988, que criminaliza o racismo, houve uma mudança no próprio
negro, que passou a se colocar de forma diferente. Mais recentemente, houve a
emergência de uma juventude negra mais ativa, com uma base mais militante, o que
fez com que um grupo de pessoas tivesse mais coragem, instrumentos e
possibilidades legais para fazer as denúncias", disse. "Antes, o
negro sofria calado as violências físicas simbólicas, mas hoje não."
"Ser
negro não é uma condição biológica, subjetiva. Ser negro é uma construção
histórica e social. É se identificar com a história política, com a
ancestralidade e se solidarizar com as condições políticas e de vida da
população negra", completa.
FONTE: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2016/11/18/nao-quero-ser-o-unico-negro-em-nenhum-lugar-diz-professor-ofendido-em-sp.htm