Meta-análise conduzida por diferentes grupos de pesquisa do Brasil consolida os principais achados sobre o vírus, da epidemia de 2015 até os dias de hoje (foto: Sumaia Villela/Agência Brasil)
Theo
Ruprecht | Agência FAPESP
Foi publicada na revista The Lancet Regional Health
– Americas a maior e mais abrangente meta-análise já feita até o momento sobre
os efeitos do vírus zika em filhos de mulheres infectadas durante a gestação. A
partir de 13 estudos nacionais que reúnem dados de 1.548 gestantes, o artigo
chega a conclusões robustas, como a de que quase um terço das crianças
apresenta alguma anormalidade em decorrência da infecção e 4% manifestam
microcefalia propriamente. Com isso, estabelece as bases para políticas
públicas assertivas, melhores cuidados e para priorizações do ponto de vista de
novas pesquisas.
Em
2015, quando a explosão de casos de microcefalia em crianças foi associada ao
zika e o Ministério da Saúde declarou estado de emergência nacional,
pesquisadores brasileiros foram obrigados a apertar o passo para trazer
respostas sobre a epidemia o mais rapidamente possível. “Diante disso, não
houve tempo para uma grande articulação nacional e diferentes grupos conduziram
estudos independentes”, lembra o epidemiologista Ricardo Arraes de Alencar
Ximenes, um dos autores da pesquisa e professor da Pós-Graduação em Medicina
Tropical da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Essa pulverização resultou
em amostras menores de pacientes, protocolos com critérios díspares e
variabilidade de resultados, que aumentavam as incertezas sobre as descobertas.
“Mas
já em 2016 começamos a conversar com esses grupos para harmonizar os protocolos
e, a partir daí, consolidar os dados dos diferentes estudos. A ciência
brasileira mostrou sua maturidade e capacidade nessa epidemia”, ressalta
Ximenes, que também é professor da Pós-Graduação de Ciências da Saúde da
Universidade de Pernambuco. Dessas interações surgiu o Consórcio Brasileiro de
Coortes do Zika, que hoje conta com cientistas de 26 instituições e que
possibilitou a meta-análise recentemente divulgada. “O grande valor do artigo,
o primeiro do consórcio, é a união de forças, que permite chegar a resultados
mais confiáveis”, destaca o especialista.
O
trabalho contou com o apoio da FAPESP por meio de seis projetos: (16/08578-0,
17/21688-1, 13/21719-3, 16/15021-1, 15/12295-0 e 16/05115-9).
Sistematização
do conhecimento
Para
serem incluídos na meta-análise, os estudos deveriam ter confirmado o
diagnóstico de infecção por zika em mulheres grávidas por meio de exames de
RT-PCR, considerados os mais confiáveis, antes de qualquer anormalidade ser
detectada no feto. Eles também precisavam ter sido conduzidos no Brasil e
acompanhar as mulheres e seus filhos até pelo menos o fim da gestação.
Os
estudos incorporados na revisão contemplaram as quatro regiões mais afetadas
pela epidemia de zika – Nordeste, Norte, Centro-Oeste e Sudeste. Os dados de
cada participante foram analisados de forma individualizada e organizados em
uma série de possíveis desfechos provocados pelo vírus nas crianças. Eles iam
de baixo peso ao nascer até microcefalia, passando por questões oftalmológicas
e neurológicas, como convulsões.
Ximenes
destaca que, como a epidemia de zika foi detectada pelo aumento de casos de
microcefalia, parte da população ainda acredita que essa é a única anormalidade
mais preocupante ligada à infecção. Porém, ele reitera que a síndrome congênita
ligada ao vírus pode se manifestar de variadas formas, que incluem dificuldades
de visão e déficits motores, entre outras.
Considerando
os episódios de microcefalia e as anormalidades neurológicas, oftalmológicas e
de neuroimagem (alterações nos exames que miram o cérebro), foram encontradas
alterações em 31,5% das crianças – quase um terço da amostra. “Não é uma
surpresa encontrar um número tão alto, mas agora temos maior confiança nele”,
diz Ximenes.
O
virologista Maurício Lacerda Nogueira, professor da Faculdade de Medicina de
São José do Rio Preto (Famerp) e membro do Consórcio Brasileiro de Coortes do
Zika, pondera que as gestantes e as crianças foram superavaliadas justamente
por participarem das pesquisas: “Isso gera uma detecção acima da média de
alterações menores, que talvez passassem despercebidas”. É possível, por
exemplo, que uma anormalidade no cérebro encontrada na meta-análise fosse
assintomática, ou provocasse apenas sintomas leves. “Independentemente disso,
um terço de crianças afetadas é um dado muito impactante, que mostra o
potencial do zika”, complementa.
Além
disso, Ximenes argumenta que mesmo manifestações menores podem, com o passar
dos anos, desencadear problemas.
A
microcefalia
Segundo
a meta-análise, 2,6% dos filhos de mães infectadas apresentaram microcefalia
logo na primeira avaliação médica. No entanto, outras crianças receberam o
mesmo diagnóstico com o passar do tempo – no total, 4% manifestaram o quadro ao
longo dos primeiros anos de vida.
“Nossos
resultados indicam que, entre crianças com microcefalia, a fração diagnosticada
de maneira tardia não é negligenciável”, dizem os autores no artigo. “O risco
de microcefalia pós-natal associada ao zika não havia sido documentado antes.
Isso demonstra a relevância de monitorar o crescimento da cabeça de todas as
crianças expostas ao vírus antes do nascimento, mesmo se elas tiverem uma
circunferência normal de crânio ao nascimento”, arrematam.
Aliás,
crianças com microcefalia associadas ao zika tendem a apresentar diferentes
disfunções simultaneamente. “Isso levou pessoas a acreditarem que a síndrome
congênita ligada ao zika é caracterizada, via de regra, por uma série de
problemas”, diz Ximenes. “Mas isso, na verdade, não ocorre na maioria dos
casos.”
Segundo
a meta-análise, menos de 1% das crianças afetadas pela infecção da mãe exibiam
mais de uma anormalidade. “Ou seja, verificamos que as manifestações costumam
surgir de forma isolada”, reitera o epidemiologista.
A
descoberta serve como alerta inclusive para profissionais, que às vezes podem
não relacionar um quadro ao zika – ou mesmo deixá-lo passar – por se tratar de
um sintoma isolado. “E o diagnóstico precoce da síndrome possibilita
intervenções precoces, que beneficiam os pacientes”, afirma Ximenes.
Fatores
associados?
Com
o avançar da epidemia de zika, passou-se a avaliar se alguns fatores modulariam
o risco de microcefalia causada pela infecção durante a gestação. Dengue, uso
de larvicidas e mesmo questões socioeconômicas foram levantadas como possíveis
catalisadoras dessas complicações. “Isso aconteceu porque muitos casos de
microcefalia foram detectados no Nordeste, mas nem tantos em outras regiões.
Então se postulou que algum fator ligado à pobreza influenciaria na associação
entre zika e essas anormalidades”, esclarece Ximenes.
Entretanto,
essa hipótese perdeu força com a publicação da meta-análise em questão. “O
risco [de microcefalia após infecção por zika na gestação] foi similar em todos
os locais estudados e em diferentes condições socioeconômicas. Isso indica que
provavelmente não há outros fatores modificando essa associação”, aponta o
artigo.
Ou
seja, a concentração de casos de microcefalia no Nordeste resulta simplesmente
do maior número de infecções. “Onde há pobreza, há mais mosquito”, destaca
Ximenes. “Em muitos municípios do Nordeste, o fornecimento de água não é
diário. Então a população precisa estocar água, o que aumenta os criadouros de
mosquito”, complementa.
Nogueira
acrescenta que, como o Nordeste foi a primeira região a ser afetada pelo zika
no Brasil, a população local foi a que mais sofreu com a falta de informações:
“Quando o vírus chegou ao interior de São Paulo, por exemplo, já havia mais
notícias e até recomendações como a de evitar gestações, que obviamente
evitaram casos de microcefalia”.
Ele,
aliás, orientou um trabalho que descartou a hipótese de que uma infecção prévia
por dengue aumentaria o risco de microcefalia após o zika (leia mais em:
agencia.fapesp.br/35942/).
Próximos
passos
“Talvez
a maior limitação do nosso trabalho seja a falta de um grupo-controle”, afirma
Ximenes. Essa ausência é justificável, na medida em que os estudos incluídos na
meta-análise foram aqueles conduzidos durante a epidemia de zika e que, portanto,
precisavam trazer respostas rápidas. De qualquer forma, futuros levantamentos
podem fazer comparações com crianças cujas mães não foram infectadas com o
vírus durante a gestação para sedimentar ou aprimorar os achados.
Os
autores da meta-análise sugerem pelo menos dois caminhos no artigo que futuras
pesquisas podem trilhar: uma investigação aprofundada, com métodos de
diagnóstico avançados, para identificar complicações que podem aparecer ou se
tornar mais evidentes em crianças com microcefalia, para além de mortes e
hospitalizações; e, em crianças sem microcefalia, seria possível estudar o
risco de manifestações relacionadas ao desenvolvimento comportamental e
neuropsicomotor que seriam diagnosticadas com o avançar da idade, a partir de
ferramentas específicas.
Para
além disso, Ximenes e Nogueira concordam que os dados desse trabalho reforçam a
necessidade de um monitoramento constante do zika. E, para isso, os centros de
pesquisa e as autoridades devem priorizar o desenvolvimento de testes precisos
e baratos para diagnosticar o vírus.
“Seu
uso ajudaria a minimizar o risco de novas infecções se disseminarem e causarem
ondas de doença e complicações”, raciocina Ximenes. Seria possível, por
exemplo, empregar esses testes para fazer uma vigilância ativa em locais
estratégicos ou grupos populacionais específicos. A partir daí, as autoridades
públicas adotariam medidas de controle para evitar surtos e epidemias. É
importante lembrar também que, além dessas estratégias, intervenções públicas
para melhorar as condições de vida da população, o saneamento e o controle de
mosquitos podem ser mais eficazes e ter um efeito duradouro para reduzir o
risco de transmissão.
Esforços
também deveriam ser concentrados na criação de uma vacina contra o zika. “Há
trabalhos nacionais e internacionais em andamento que podem contribuir para
definir uma composição ideal desse imunizante. Mas deve demorar anos antes que
se chegue a essa candidata a vacina, para então começarmos a avaliar sua
segurança e eficácia”, estima Nogueira.
Em
paralelo, Ximenes dá o recado de que os filhos de mães infectadas durante a
gravidez deveriam ser avaliados pelo menos uma vez por especialistas e
acompanhados de perto mesmo se não tiverem exibido sintomas. “No mais, a
epidemia vai, mas as crianças ficam. Precisamos cuidar bem delas e fazer de
tudo para amenizar seus problemas”, completa.
Vai
vir de novo?
A
atenção dada ao zika arrefeceu, em especial durante a pandemia de COVID-19.
Tanto Nogueira quanto Ximenes concordam que isso é compreensível, até porque os
laboratórios tiveram de se dedicar ao SARS-CoV-2 e ao tremendo impacto que ele
provocou na sociedade. Mas a verdade é que os novos episódios de síndrome
congênita associada ao zika também diminuíram. Se em 2015 e 2016 foram
notificados 12.716 casos suspeitos, em 2022 o número ficou em 419, segundo
Boletim Epidemiológico de setembro, do Ministério da Saúde. Dos casos
identificados no ano passado, 76% seguem em investigação, mas apenas um foi
confirmado – e a criança nasceu em 2016.
“Isso
é da dinâmica natural de doenças transmitidas por vetores como os mosquitos.
Elas vêm, causam uma epidemia e aí desaparecem por um período”, analisa
Nogueira. “Agora, podemos não estar vendo mais o zika porque também não estamos
fazendo testes. Só gestantes ou pacientes com sintomas neurológicos costumam
ser avaliados atualmente”, pondera.
O
virologista da Famerp explica que o sobe e desce de casos de arboviroses é
multifatorial. Os números podem cair porque parte da população desenvolveu
imunidade por um curto período de tempo ao ser exposta, por alguma reação
cruzada com outro vírus (como a dengue), pela adaptação aos mosquitos que
funcionam como vetores etc. “É um fenômeno complexo, que inclusive estudamos no
nosso grupo. Mas acredito que daqui a alguns anos poderemos ter um aumento de
casos de zika e, com isso, de suas complicações”, alerta.
Diante
dessa previsão, ele reforça a necessidade de uma vacina e de novos exames, além
de incentivar medidas de conscientização da população sobre o zika e outras
arboviroses.
O
estudo Risk of adverse outcomes in offspring with RT-PCR confirmed prenatal
Zika virus exposure: an individual participant data meta-analysis of 13 cohorts
in the Zika Brazilian Cohorts Consortium pode ser acessado em:
Fonte:
THE LANCET Regional Health - Américas
Agência FAPESP