Os professores também são parte dos problemas da universidade brasileira
O esforço acadêmico está em declínio inédito em todo lugar. A inteligência é desprezada aqui no exterior. O que a leitura oferece aos alunos a não ser lágrimas?
Egbert de Liège, no séc. XI
LEONARDO MONASTERIO
Estudantes revoltam-se contra o professor, amotinam-se e solicitam a mudança do conteúdo das aulas, da forma de ensinar e dos critérios de avaliação. “Ah, esses alunos de hoje não respeitam quem quer que seja”, imagino que alguém venha a dizer. Contudo, essa história ocorreu há mais de três décadas, em 1987, na disciplina de matemática de uma faculdade de economia – e eu era um dos amotinados.
Hoje me arrependo do que fiz. Depois de mais de 25 anos de docência universitária, em duas universidades públicas federais e cinco instituições privadas, tenho outra visão do episódio. Nem poderia ser diferente. Na época, eu e meus colegas éramos imaturos, e nossa ação serviu para forjar elos de confiança e amizade entre nós. Com apenas 16 anos e aluno medíocre, eu deveria ter sido mais generoso com o professor.
Confissão feita, passo ao que interessa, dois textos publicados na piauí: Parece revolução, mas é só neoliberalismo e a réplica Parece democrática, mas é autoritária. Ambos erram no diagnóstico dos problemas da relação professores-estudantes e da pesquisa universitária.
O primeiro texto, escrito sob o pseudônimo Benamê Kamu Almudras, lista um rosário de eventos recentes em que os alunos surgem como algozes e os professores como vítimas. Mesmo os alunos de esquerda seriam manipuladores, preguiçosos, mal-educados e chorões. Para Almudras, apesar do verniz revolucionário que ostentam, com ideias de romper as relações de poder e lutar por justiça social, esses estudantes na verdade encarnariam uma atitude neoliberal no modo de tratar os professores, tomando-os como meros prestadores de serviços que devessem satisfazer os caprichos dos alunos-clientes.
O texto passa então a criticar especialmente os estudantes mais engajados que usam causas progressistas, como o combate à transfobia e à homofobia, ao racismo e ao machismo, para atacarem os professores. Segundo Almudras, as vítimas principais seriam os professores jovens, em início de carreira e que ministram justamente cursos dedicados a essas justas causas. Acusações falsas deixariam os professores na defensiva. Estranhamente, o autor diz que os professores também reagem de forma neoliberal ao atribuir “a particularidades de certas situações e de indivíduos cada caso de abuso, desrespeito, privatização, calúnia ou difamação” (não consigo entender o que o termo “privatização” faz no meio de crimes previstos no Código Penal).
A epígrafe deste texto já revela meu argumento. Se o escritor Egbert de Liège, na Bélgica do século XI, já se queixava dos alunos, e Almudras no Brasil do século XXI também reclama, talvez se trate de um fenômeno mais persistente.
Quem melhor explicou o fenômeno foi Becker. Não falo de Gary Becker, o ganhador do Prêmio Nobel de Economia e geralmente associado ao neoliberalismo. Falo de Howard Becker, o brilhante sociólogo norte-americano. Já em 1952, no artigo Social-Class Variations in the Teacher-Pupil Relationship (Variações de classe social na relação entre professor e aluno), ele identificava o problema: os trabalhadores idealizam o seu público e orientam o exercício de seus ofícios de acordo com essa idealização. A partir de suas pesquisas empíricas, Becker identificou que músicos de jazz e dançarinas sonham com uma plateia ideal. O mesmo acontece com os enfermeiros, sempre em busca de pacientes perfeitos. Todos nessas ocupações se frustram e se sentem desvalorizados pelo seu público. Para Becker, os professores não são exceção.
Sonhamos com estudantes ideais e, baseados nessa fantasia, os professores organizam a sua prática docente. Os mais dedicados preparam ótimos cursos, com bibliografias atualizadas, pensando que, dessa vez, tudo será diferente. Tal como Charlie Brown tentando chutar a bola, descobrimos mais uma vez que os alunos não são como gostaríamos. No último segundo, Lucy move a bola e vamos ao chão. Todo semestre é assim. Para se recuperar do baque, uns apenas engolem a frustração. Outros, no qual sem modéstia me incluo, tentam compreender as dificuldades e personalidades dos alunos, aceitando que as expectativas que têm são irreais. Há ainda aqueles que escrevem artigos culpando o neoliberalismo.
Não tenho dados para confirmar se a visão de Becker é válida no caso das universidades brasileiras. Porém, apelo para a experiência dos professores que me leem: quando se encontram em reuniões informais, tendem a elogiar ou a criticar os alunos? O desabafo das frustrações nos bastidores une os professores universitários e os transforma em uma “equipe” – conceito do sociólogo Erving Goffman. Mesmo professores das universidades mais prestigiosas reclamam dos alunos e acham que no passado tudo era melhor. Não deixa de ser irônico que Almudras, que parece ser um sincero defensor das causas progressistas, tenha uma narrativa semelhante à conservadora. Na sua visão, tudo era bom, até que foi estragado pelos alunos ditos revolucionários, mas que são – inconscientemente – neoliberais.
Certamente há exceções: professores que encontram nos alunos aquela idealização do público identificada por Becker. Por vezes damos a sorte de encontrar uma turma motivada, surpreendente, interessada nos nossos esotéricos temas de pesquisa. Mesmo em turmas “difíceis”, há estudantes que se aproximam do ideal, e os guardamos no coração por toda a vida (especialmente os que são versões mais jovens de nós mesmos). A regra, contudo, é a frustração.
Devemos ser sinceros. Não há apenas alunos com comportamento reprovável, há também muitos colegas de profissão. As universidades privadas têm seus problemas, mas a cobrança do desempenho didático é, em geral, muito baixa nas instituições públicas. Como os professores são pouco avaliados na sala de aula, uma parcela considerável deles assina um pacto de mediocridade implícito com os alunos: fingem que ensinam e os estudantes fingem que aprendem. Os mestres ganham seus salários regularmente, e os alunos, suas notas altas. Só o contribuinte, esse desconhecido, sai perdendo.
Há professores motivados e que se realizam em seus cursos. Às vezes, eu me sinto um desses. Essa experiência, contudo, não é geral. Se os professores realmente amassem tanto dar aulas para os alunos reais (e não os idealizados), como dizem, eles lutariam para ficar mais tempo em sala de aula. Quem já foi chefe de departamento de uma universidade pública conhece as dificuldades de alocar os docentes nas disciplinas de graduação. E muitos professores evitam a sala de aula mesmo na pós-graduação. Só não há problemas quando são liberados para escolherem o conteúdo, o dia e os horários das disciplinas. Brigas sem fim surgem em razão de alguns professores se sentirem injustiçados por terem recebido um número excessivo de turmas, ou turmas com muitos alunos.
A falta de cobrança efetiva cria todo tipo de desequilíbrio na universidade. Alguns cursos que tiveram muito poder na burocracia acadêmica acumularam muitos professores, enquanto outros sofrem com a escassez. São conhecidos os casos de professores com baixíssima carga horária que ministram cursos de má qualidade, enquanto outros abnegados, geralmente mais jovens, sofrem com muitas horas na sala de aula. O sentimento de injustiça destes tem fundamento e deveria ser ouvido.
Apesar de os problemas se manifestarem entre os estudantes, Almudras, porém, os isenta de culpa. Apela ao bicho-papão, a Geni conceitual da vez: o neoliberalismo.
Sempre que um problema complexo é discutido, alguém atribui a culpa ao neoliberalismo. Ele está para a argumentação de certos grupos acadêmicos como a hera está para os arquitetos ou glutamato para os cozinheiros: encobrem as falhas, mas não resistem a um exame mais cuidadoso. O neoliberalismo assume o papel que era atribuído ao miasma antes dos avanços da microbiologia: uma emanação invisível, responsável pelas infecções e epidemias. Lembra também o Horla, do conto de Guy de Maupassant, uma criatura invisível que causa destruição por onde passa.
No imaginário esquerdista, o imperialismo já foi o miasma. Ele era visto em todos os lugares, até nos quadrinhos do Pato Donald. Isso ficou para trás, junto com os pôsteres do Che Guevara e os discos do Gonzaguinha. Só uns jovens marxistas recreativos ainda levam o imperialismo a sério. Desde meados dos anos 1990, a onda é culpar o neoliberalismo.
O fantasma do neoliberalismo não ataca apenas o Brasil. A página na internet Museu de Culpas do Neoliberalismo reúne trechos de textos de pesquisadores e intelectuais de todo o mundo que apontam essa doutrina como culpada por coisas como: conferências chatas, selfies de corpos malhados, propagação da Covid-19, astrologia, obesidade dos pobres etc. Devo confessar que repassei meu acervo de pérolas para os curadores inaugurarem o museu.
Na próxima vez que algo ruim acontecer na sua vida, experimente atribuir a culpa ao neoliberalismo. Bateu o carro? Culpa do neoliberalismo que privilegia o transporte individual no lugar do coletivo. Brigou com a pessoa amada? A vida profissional no neoliberalismo pressiona a vida amorosa e impede vínculos duradouros. Caiu um raio e o computador queimou? Essa é fácil: o neoliberalismo levou ao aquecimento global que aumentou a frequência de relâmpagos. Se a empresa de energia for estatal também é possível dizer que está sendo desmantelada para ser privatizada ou culpar o teto de gastos. Fica a gosto do freguês (note que a expressão já revela o meu neoliberalismo!). Eu poderia continuar esse jogo inútil até o fim dos tempos.
A compulsão de encontrar culpados volúveis não é monopólio da esquerda universitária atual. A nova direita hidrófoba faz o mesmo, evocando o comunismo, o globalismo e a ONU. Até uns tais metacapitalistas viraram entidades quase sobrenaturais. No antissemitismo mal disfarçado dessa patotinha, George Soros se transformou em uma criatura onisciente que comanda os destinos do mundo. Cada pessoa cria seus próprios demônios.
Mas que diabos é o neoliberalismo? Não vou entrar nessa discussão. Quem entrou, raramente saiu com vida. Os debatedores se perderam em brigas conceituais, confundiram e entediaram seus leitores. Apenas posso garantir que, não importa que conceito seja adotado, a economia brasileira não é liberal ou neoliberal. Somos um país fechado, com muitas regulações, e o Estado é grande, ineficiente para satisfazer as necessidades mais básicas da população, colaborando para a manutenção das múltiplas desigualdades brasileiras.
Além disso, essa insistência em usar o termo “neoliberal” de forma elástica, como sinônimo para tudo-de-que-não-gosto-do-mundo, esvazia o conceito de significado. O individualismo e o egoísmo seriam neoliberais. Quer dizer que antes de Milton Friedman a humanidade era formada de pessoas generosas que pensavam mais na coletividade do que nos seus interesses? Séculos de escravidão, corrupção, espoliação e violência me fazem duvidar dessa visão idealizada do passado pré-neoliberal.
A crítica de Andrade se baseia em dois pilares. O primeiro é a negação da possibilidade de um neoliberalismo de esquerda, uma vez que este não poderia ser dividido. Seria algo uno que impregnaria as relações socioeconômicas, uma lógica presente em tudo, até nos afetos. Os alunos não poderiam escolher agir de forma não neoliberal, pois o neoliberalismo está em toda parte. Espero já ter dado argumentos que evidenciam a fraqueza da visão do neoliberalismo como espírito onipresente ou – me ocorre agora – como a força gravitacional, que dificulta o voo dos seres humanos.
Em segundo lugar, na crítica de Andrade, Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) seriam governados por um produtivismo neoliberal que privilegiaria a produção em massa de artigos científicos. O fantasma neoliberal abandona o corpo dos alunos e reencarna na suposta lógica meritocrática das agências federais de financiamento e avaliação dos programas de pós-graduação.
Andrade afirma que a “produtividade individual no campo universitário, tal como projetada por uma economia de aspiração neoliberal, é o regime de poder”. Para começo de conversa, a produção de conhecimento é uma aventura cooperativa. A ciência avança porque subimos nos ombros de gigantes, como disse Newton, ou porque trabalhamos cada vez mais em colaboração com outros pesquisadores (do Brasil e do mundo). O computador em que digito essas palavras é a prova disso. Um número incontável de seres humanos contribuiu para o progresso científico que nos permite procrastinar no Facebook, Twitter, Instagram ou TikTok.
O problema da pós-graduação brasileira é exatamente o oposto. Na maior parte das áreas, faltam critérios impessoais de produtividade. Os programas de mestrado e doutorado já consolidados, grandes e poderosos dentro dos conselhos das áreas, criam regras que os protegem e os perpetuam no poder. O Qualis-Capes, a classificação oficial dos periódicos científicos, costuma superestimar os journals em que os pesquisadores desses programas publicam. Isso faz com que periódicos com baixos indicadores de impacto, ou seja, que são pouco citados por outras publicações científicas, ocupem o topo do ranking. Essa distorção não só afeta a distribuição de recursos de pesquisa e bolsas como prejudica a própria ciência brasileira.
Essa deturpação foi recentemente documentada pelo pesquisador Rodolfo Jaffé em Qualis: The Journal Ranking System Undermining the Impact of Brazilian Science (Qualis: o ranking das publicações prejudica o impacto da ciência brasileira), na revista Anais da Academia Brasileira de Ciências (vol. 92, nº 3). Ele mostra que o Qualis incentivou a publicação em periódicos de baixo impacto que tivessem notas altas para a Capes. Há também uma forte variação entre as áreas: as ciências sociais são, em geral, mais enviesadas do que as ciências naturais.
Essas distorções levaram à queda da influência da ciência brasileira no mundo. Isso não tem qualquer relação com o neoliberalismo ou com o individualismo. É o resultado de um sistema de avaliação que, baseado na participação dos próprios pesquisadores da área, privilegia os grupos próximos à Capes e ao CNPq.
Andrade também critica a distribuição de bolsas de produtividade de pesquisa do CNPq. Seria a imposição de uma agenda produtivista individual, o neoliberalismo materializado. Nada mais distante da verdade. Também as bolsas de produtividade do CNPq foram distorcidas com o passar do tempo. Criadas como incentivo aos pesquisadores, os critérios foram contaminados para premiar dimensões não relacionadas à pesquisa. Existem áreas de avaliação do CNPq em que, por exemplo, ser diretor de faculdade, uma atividade de gestão universitária, conta para bolsa de produtividade em pesquisa.
Para os pedidos de bolsas de produtividade do CNPq é exigido um projeto de pesquisa. A avaliação é feita por pares que sabem o nome do pesquisador proponente, mas este não sabe o dos pareceristas. Com isso, abre-se a porta para critérios de avaliação difusos, idiossincráticos e que, de forma consciente ou não, viabilizam o compadrio, o privilégio de grupos e as trocas de favores. Um sistema mais enxuto de avaliação, baseado em medidas mais objetivas de produção científica dos pesquisadores, seria mais justo e eficiente.
Ao contrário do que crê Andrade, o verdadeiro regime de poder não está no produtivismo, mas na falta de critérios objetivos que amplia a ação dos professores dos centros de pós-graduação mais influentes. O texto critica o suposto produtivismo da academia sem perceber que sem as medidas de desempenho reinaria o compadrio.
O sistema atual poderia ser corrigido sem uma revolução. Sugiro três propostas simples e de fácil aplicação:
1) Classificar as revistas acadêmicas apenas por medidas objetivas, já disponíveis, que considerem a sua relevância nas áreas de pesquisa. O Qualis foi uma boa tentativa durante algum tempo, mas se revelou um erro, tal como mostrou Jaffé, e deveria ser extinto. Já há discussões avançadas nesse sentido e torço para que sejam implementadas;
2) Incluir a participação de pesquisadores de centros de referência estrangeiros na avaliação dos programas de pós-graduação brasileiros. Como não seriam alvos da classificação, os estrangeiros estarão mais livres de pressões do que colegas nacionais;
3) Distribuir as bolsas de produtividade em pesquisa com base – surpresa! – na produtividade em pesquisa. Idealmente, o sistema seria automático. Para isso, bastaria pontuar a produção acadêmica dos pesquisadores objetivamente, levando em conta os indicadores de impacto dos journals. Isso evitaria a multiplicação de publicações irrelevantes apenas para gerar uma linha adicional no currículo Lattes.
Obviamente um sistema de avaliação assim não seria perfeito. Entretanto, seria menos distorcido que o atual, que é muito excludente, não custa reiterar. Ademais, caso se considere apropriado adotar políticas compensatórias para as minorias, grupos não privilegiados ou regiões, o sistema poderia incorporá-las de forma transparente e pública.
Tenho certeza de que os professores Almudras e Andrade são pessoas bem-intencionadas e que nós compartilhamos os mesmos objetivos. Os psicanalistas (e todas as pessoas de bom senso) dizem que o primeiro passo para a cura é aceitar a existência de um problema. Becker nos ajuda a entender os sentimentos dos professores em relação aos alunos e a sermos mais generosos. Mas atribuir a um mítico neoliberalismo a origem de todos os males da universidade brasileira limita a possibilidade de avanços.
A culpa por esses males, meus caros professores, não é do neoliberalismo, mas de nós mesmos. Não há nenhum monstro neoliberal embaixo de nossas camas. Somente olhando no espelho e encarando os problemas reais das universidades brasileiras, nós poderemos de fato superá-los.
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