sábado, 22 de abril de 2023

NÃO É SÓ O BRASIL: A DEMOCRACIA ESTÁ SENDO CORROÍDA EM TODO O MUNDO

         A group of pro-Bolsonaro rioters attack government institutions in Brasília, on January 8, 2023. MARCELO CAMARGO (EFE)

“Os demagogos – aproveitando-se da agitação social e da polarização – estão corroendo a força das democracias. Apesar disso, as instituições continuam a mostrar resiliência face ao autoritarismo”, comenta o correspondente de assuntos internacionais do jornal El País

O ataque de 8 de janeiro à capital do Brasil – perpetrado por uma multidão de apoiadores do ex-presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro – é mais um lembrete sobre a crescente ameaça global à democracia.

Somente nas últimas semanas, vários sinais de desgaste do tecido democrático se materializaram. A violência aumentou no sul do Peru, após o impeachment do ex-presidente Pedro Castillo, que tentou fechar o Congresso de seu país antes de ser preso. Na Tunísia – outrora uma grande esperança democrática no mundo árabe – uma eleição foi realizada pouco antes do Natal, que teve uma participação desanimadora de apenas 11%, ameaçando a credibilidade do processo. Enquanto isso, o presidente da Turquia, Erdoğan, está usando o sistema judicial do país para perseguir potenciais oponentes – incluindo liberais, esquerdistas e centristas – que têm uma boa chance de derrotá-lo em 2023, caso consigam ficar fora da prisão.

Esses desenvolvimentos são apenas os últimos em um fenômeno de deterioração democrática – algo sobre o qual estudiosos e grupos da sociedade civil vêm alertando há algum tempo. No entanto, muitas democracias também mostraram sinais notáveis ​​de resiliência. Nos casos do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump e de Bolsonaro, ambos foram derrotados em processos democráticos, enquanto os serviços de segurança e os tribunais conseguiram conter a violência de seus partidários mais radicalizados.

Especialistas ainda alertam sobre ser complacente. A Freedom House – uma organização sediada em DC financiada pelo governo dos EUA – registrou um declínio na liberdade em todo o mundo nos últimos 16 anos. Mais países experimentaram retrocessos democráticos, em vez de fazer progressos. Em 2021, 60 países democráticos foram classificados como em regressão, enquanto 25 foram considerados em progresso.

Da mesma forma, o Instituto para a Democracia e Assistência Eleitoral (IDEA) – organização intergovernamental sediada na Suécia e financiada por 34 países – detecta que, entre os cem países classificados como democracias, houve um aumento acentuado no número de nações que sofrem de um cerceamento das normas democráticas. Dos 104 rastreados pelo IDEA, 48 estavam regredindo, com apenas 14 melhorando. As demais permaneceram estagnadas. Enquanto isso, um estudo da Universidade de Cambridge aponta para um distanciamento especialmente alto da política sendo observado entre as gerações mais jovens.

Quais são as causas desse fenômeno? Obviamente, cada país tem suas especificidades, mas existem alguns denominadores comuns.

“Há definitivamente uma crise das democracias”, afirma Paolo Gerbaudo, sociólogo do King’s College de Londres. “Na minha opinião, uma das principais causas é a forma como a globalização tornou o Estado nacional democrático – o quadro fundamental no qual se desenvolveu a democracia que conhecemos – numa estrutura extremamente frágil. Os efeitos da globalização impedem [os governos democráticos] de fazer as coisas, cumprir as promessas, isso causa decepção, um sentimento de traição”.

Kevin Casas-Zamora, secretário-geral do IDEA e ex-vice-presidente da Costa Rica, aponta três razões principais. Em primeiro lugar, “a desintegração interna, com o surgimento da polarização extrema”. Depois, “a perda de confiança nas instituições democráticas como instrumentos capazes de dar soluções sólidas aos problemas do povo. Nessa área, um elemento particularmente tóxico é a corrupção, que gera um alto grau de distanciamento”. No Brasil, uma das principais razões para a ascensão de Bolsonaro ao poder em 2018 foi a enorme quantidade de corrupção que manchou a administração do Partido dos Trabalhadores de Lula, que esteve no poder de 2003 a 2016.

Por fim, Casas-Zamora observa “o contexto internacional, onde se paga um preço mais baixo por seguir um caminho autoritário . Existem modelos – como o chinês – que combinam uma repressão horrível com um alto grau de eficiência econômica”.

Gerardo Berthin, vice-presidente de programas internacionais da Freedom House, também destaca que a desigualdade econômica é um poderoso fator por trás da frustração. As mudanças demográfico-sociais são percebidas por alguns grupos como realidades ameaçadoras, que os levam a buscar alternativas políticas radicais.

O crescente descontentamento com as condições de vida é aproveitado por líderes populistas, que exacerbam a polarização, cultivam um clima de animosidade e desmantelam as instituições democráticas, de modo a reduzir os freios e contrapesos ao seu poder.

Há amplos setores das sociedades democráticas para os quais se quebrou a ideia de que o futuro será melhor. Isso gera uma rejeição sistêmica ao status quo, abrindo caminhos perigosos para expressar frustração.

Yasha Mounk e Jordan Kyle publicaram um extenso estudo sobre a ascensão do populismo em 2018. Os dois cientistas políticos construíram um banco de dados, compilando uma lista de governos definidos como “populistas” comparando mais de 50 periódicos acadêmicos. Eles identificaram 46 líderes populistas ou partidos políticos no poder em 33 países entre 1990 e 2018.

O estudo produziu vários resultados perturbadores. Em primeiro lugar, esse tipo de governo permanece no poder por mais tempo – em média – do que os não populistas; apenas uma minoria desses líderes deixa o poder por meio de um processo normal de transição. Cerca de 50% reformam a constituição para reduzir freios e contrapesos, eliminar limites de mandatos ou empilhar o judiciário com partidários.

Constatou-se também que há uma proporção semelhante de líderes populistas de direita e de esquerda, causando um declínio significativo na democracia. Cinco dos 13 casos à direita; cinco dos 13 casos à esquerda. Claramente, o desdém pela democracia não se limita a um lado do espectro político.

No entanto, no longo prazo, os sistemas democráticos tendem a demonstrar superioridade persistente sobre as autocracias, em várias áreas. Isso ficou claro durante a pandemia, quando regimes autoritários – como a China – instituíram restrições draconianas, muitas vezes usando a violência para fazer com que suas populações seguissem a linha. Três anos depois, a China está atolada em uma complexa gestão da crise de Covid, enquanto os países democráticos a deixaram para trás. Os desenvolvimentos farmacêuticos foram mais impressionantes em países democráticos, enquanto as restrições pandêmicas – embora severas – foram mais humanas do que nas ditaduras.

A guerra na Ucrânia também é evidência da persistente superioridade militar das democracias. A entrega de armamento, treinamento e inteligência conseguiu parar o ataque russo. As democracias demonstraram um grau efetivo de coordenação econômica, humanitária e militar.

Esses traços de eficiência e vitalidade somam-se aos fundamentos inigualáveis ​​dos projetos democráticos, a começar pelo respeito às liberdades individuais e aos direitos humanos. Mas todos esses elementos positivos não são suficientes para garantir um futuro brilhante.

“As demandas sociais estão crescendo em velocidade exponencial. A capacidade de resposta não avançou no mesmo ritmo. É fundamental que as democracias apliquem seu mecanismo de autocorreção para reduzir a lacuna entre as demandas e a capacidade de resposta”, alerta Casas-Zamora, que defende que é necessária uma reformulação do contrato social.

Na União Europeia, a mudança da austeridade – após a crise financeira de 2008 – para a resposta anticíclica à pandemia parece muito com uma tentativa de um novo contrato social. “As políticas de austeridade são perigosas para a democracia. A Next Generation EU [plano de recuperação do bloco] está, sem dúvida, mais madura”, diz Gerbaudo.

O sociólogo observa que, de qualquer forma, as revoltas violentas – como aconteceu nos Estados Unidos há dois anos, ou no Brasil na semana passada – não devem ser menosprezadas.

“Esses [motins] não tiveram sucesso e têm características pitorescas. Mas o que eles significam não deve ser subestimado. Há um debate contínuo sobre se [os tumultos] são aventuras fascistas ou pós-fascistas. Na minha opinião, eles são uma reminiscência daqueles movimentos de nacionalismo autoritário pré-fascista do final do século 19 e início do século 20.” O que significa que, no futuro, eles poderão ser mais eficazes.

Jornal da Ciência

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