Era
perto do fim do expediente da tarde de sábado, 25 de março de 1911, quando uma
nuvem de fumaça se espalhou pelos três andares superiores do Asch Building, em Nova York.
Ouviu-se o som de estilhaço de vidro seguido de um forte estampido. As
trabalhadoras da Triangle Shirtwaist Company, que ocupava o
espaço, acreditavam que fossem fardos de tecido ou pedaços da fachada que se
desprendiam do prédio consumido pelo fogo. Logo perceberam o horror absoluto:
aquele estranho estampido vinha dos corpos de mulheres e meninas que se jogavam
das janelas tentando escapar das chamas. Bombeiros tentavam inutilmente amparar
a queda com redes de proteção que se rompiam pelo peso dos corpos. A fumaça e
os gritos se alastravam por quarteirões, bombeiros desorientados direcionavam
as mangueiras para os últimos andares do prédio tomado pelas chamas, mas a água
só tinha pressão para atingir o sétimo andar do Asch Building. Em apenas 18
minutos, o incêndio transformou o oitavo, o nono e o décimo andar em escombros.
Dentro do prédio, trabalhadoras se espremiam contra duas saídas de emergência –
uma delas estava trancada.
Eu, junto com outras moças estava no vestiário do
oitavo andar [da fábrica] (…), às 4h40 em ponto, da tarde de sábado, 25 de março,
quando ouvi alguém gritar: fogo! Larguei tudo e corri para a porta [de emergência] que estava trancada e, imediatamente, as meninas se
amontoavam atrás dela. Os patrões mantinham todas as portas fechadas a chave o
tempo todo por medo que as meninas pudessem roubar alguma coisa. Algumas
meninas estavam gritando, outras esmurrando a porta com os punhos. (Depoimento
de Rosey Safran apud GONZÁLEZ, 2010).
Os
três pisos da Triangle Shirtwaist Company eram
ocupados por 260 trabalhadores e 240 máquinas de costura amontoadas. As
máquinas ordenadas em 16 fileiras, muito próximas, bloquearam os caminhos em
direção às portas de emergência. A fábrica não respeitava princípios básicos de
segurança e havia sido notificada diversas vezes pelo Departamento de
Construção sobre as perigosas condições do prédio.
O Asch Building terminou de ser construído em 1901,
tinha 41 metros de altura e a sua estrutura, o assoalho, a moldura das janelas
e portas eram de madeira. (…) Dadas as suas dimensões, o imóvel deveria ter
sido equipado com três escadas de acesso, mas tinha apenas duas (…) que foram
construídas tortuosas e estreitas. (…) O artigo 80 da Legislação Trabalhista
Estadual (State Labor Law) estabelecia que as portas das fábricas deveriam abrir para
fora (…) e que não podiam estar fechadas com chaves durante as horas de
trabalho. No Asch Building, todas as portas abriam para dentro, devido à
estreiteza dos corredores e escadas. (…) O Departamento de Construção enviou
uma carta aos proprietários da fábrica (…) na qual denunciava as perigosas
condições em que trabalhavam os operários, de quem nunca recebeu resposta.
(GONZÁLEZ, 2010, p. 33-35).
No incêndio, morreram 146
trabalhadores, dos quais 17 eram homens e 129 eram mulheres e meninas – 90
delas se jogaram pelas janelas do prédio. A maioria das jovens era
imigrante, tinha entre 16 a 24 anos e trabalhava em condições desumanas. Seus
salários equivaliam a um terço do recebido pelos homens, enfrentavam jornadas de
trabalho extenuantes e não tinham condições mínimas de segurança.
Isaac Harris e Max Blanck, proprietários da empresa e conhecidos
por tratar trabalhadores como “dentes de uma engrenagem”, foram acusados de
homicídio culposo. O júri composto unicamente por homens – na época mulheres
não podiam ser juradas em Nova York – os inocentou de todas as acusações: “a
defesa argumentou que não se poderia provar que eles tivessem mandados fechar
as portas” (GONZÁLEZ, 2010). A palavra das sobreviventes, que afirmaram que os
patrões trancavam as portas, de nada valeu.
Do lado de fora do tribunal, familiares, trabalhadores e ativistas
gritavam: – assassinos! O som se espalhou pelas esquinas de Nova York e 300 mil
pessoas foram às ruas debaixo de chuva para um funeral simbólico. A pergunta
era: de quem é a responsabilidade? Dos inspetores de construção que permitiram
escadas de incêndio inadequadas? Dos políticos que não exigiram normas de
segurança? Ou dos proprietários que ignoraram as recomendações da fiscalização
em nome do lucro? Ou de todos eles que tratavam operárias, sobretudo as imigrantes,
como cidadãs de terceira classe?
A história do incêndio foi
contada e recontada várias vezes e ao longo do tempo alguns fatos acabaram se
embaralhando: na versão comumente repetida, as trabalhadoras estariam ocupando
a Triangle Shirtwaist Company durante uma greve e os patrões teriam
trancado as saídas e ateado fogo na fábrica. No entanto, os relatos das
sobreviventes dão conta de que não havia greve naquele momento. Uma das maiores
greves da indústria têxtil de Nova York aconteceu de setembro de 1909 até
fevereiro de 1910 – cerca de um ano antes do incêndio. As trabalhadoras da Triangle foram as primeiras a parar, produzindo
um efeito dominó até a deflagração da greve geral, conhecida como “o levante
das 30 mil”. Foi a primeira grande greve de mulheres no país, numa época em que
nem mesmo o direito ao voto havia sido conquistado.
No documentário Triangle
– Remembering The Fire, Katharine Weber conta que sua avó, Pauline
Gottesfeld Kaufman, trabalhadora da Triangle,
foi brutalmente atacada pela polícia e por pessoas pagas para ‘desfazer’
a greve: “minha avó me falou de um guarda que tentou prendê-la ou agarrá-la.
Ela se envolveu numa luta corporal com ele e conseguiu fugir. Quando parou e
olhou para a própria mão, viu que arrancou um tufo de cabelo dele e ainda o
segurava. Muitas mulheres foram presas acusadas de perturbar a ordem pública”.
Em novembro de 1909, na assembleia do sindicato das empresas
Cooper, Clara Lemlich, trabalhadora presa pela polícia sete vezes por agitação,
fez um discurso que marcou a história do movimento sindical nova-iorquino: “sou
operária, uma dessas que estão em greve contra condições intoleráveis de
trabalho. Estou cansada de ouvir oradores. (…) Estamos aqui é para decidir se
entraremos ou não em greve. Apresento uma resolução a favor da greve geral já”.
No setor têxtil, as mulheres constituíam a maior
parte da mão de obra. As condições em que trabalhavam eram deploráveis. (…) A
paralisação começou no dia 27 de setembro de 1909, precisamente na Triangle Shirtwaist Company. (…) Os trabalhadores demandavam salários mais altos,
melhorias nas condições de trabalho, abolição do sistema de subcontratação,
jornada de trabalho de 52 horas semanais e, sobretudo, o reconhecimento de seus
direitos sindicais. (GONZÁLEZ, 2010, p. 33-45).
As jovens da Triangle eram consideradas um problema pelos
poderosos empresários do Lower
East Side. Portanto, não é possível afirmar que não existam
conexões entre o incêndio e a greve, ainda que a versão oficial diga que o fogo
foi provocado por um trabalhador que teria jogado um cigarro aceso próximo de
rolos de tecido que se acumulavam no oitavo andar do prédio. Fica evidente que
o aparato jurídico, cujas leis beneficiavam os empresários, responsabilizaram
os próprios operários por sua morte.
Quando a greve foi encerrada, mais de trezentos patrões tinham
feito acordo com os trabalhadores – no entanto, treze empresas, incluindo a
Triangle, não chegaram a nenhum acordo: “se tivessem aceitado as reivindicações
dos grevistas, o incêndio que ocorreu no ano seguinte provavelmente não teria
acontecido” (GONZÁLEZ, 2010).
Em consequência do incêndio, foi criada a Comissão de Investigação
das Fábricas, que passou a avaliar o risco em inúmeros estabelecimentos.
Frances Perkins, que se tornaria a primeira Secretária do Trabalho, fez parte
da comissão – ela estava na Washigton
Square no dia do
incêndio e viu as jovens pulando das janelas do prédio de mãos dadas e
abraçadas. Os dados apurados pela Comissão levaram à promulgação de leis em
Nova York que regulavam normas de segurança, salário mínimo, assistência aos
operários desempregados e assistência aos velhos demais para trabalhar.
O incêndio da Triangle Shirtwaist Company marcou de forma indelével o mês de
março como um momento de se interrogar o passado para retomar o presente de
forma crítica. Interrogar não apenas a história das mulheres operárias do
início do século XX, mas de todas as mulheres que vieram antes de nós. A
história do Dia internacional das Mulheres atravessa o movimento das mulheres
operárias norte-americanas, que comemoravam em diversos Estados o Woman’s Day, desde 1908, pelo esforço do
movimento de mulheres socialistas para internacionalizar a data, em 1910, e por
diversos acontecimentos que marcaram a história da luta das mulheres em
diferentes partes do mundo. Nenhuma dessas histórias pode ser apagada.
Quando Clara Zetkin propôs, na Segunda Conferência Internacional
da Mulher Socialista, realizada em 1910, um dia internacional dedicado à
reivindicação dos direitos das mulheres, ainda não havia uma dia definido, mas
a intenção de unificar uma data para celebrar a solidariedade internacional na
luta pelos objetivos comuns.
As mulheres socialistas de todas as nacionalidades organizarão em
seus respectivos países um dia especial das mulheres (…). Será necessário
debater essa proposição com relação à questão da mulher a partir da perspectiva
socialista. (ZETKIN apud GONZÁLEZ, 2010, p. 115).
Entre 1911 e 1914, o Dia
Internacional das Mulheres foi comemorado em datas diferentes do mês março.
Apenas em 8 de março de 1917, com a deflagração da greve das tecelãs de São
Petersburgo que impulsionou a Revolução Russa, esta data foi consagrada como o
Dia Internacional das Mulheres. No entanto, organizações internacionais – como
a ONU e a UNESCO – demoraram mais de 50 anos para reconhecer a data, e só o
fizeram por pressão e insistência dos movimentos feministas.
Relembrar os caminhos que
levaram a instituição dessa data é um modo resistir. Hoje, é importante impedir
que o conteúdo emancipatório desta data seja substituído por um significado
edulcorante e conveniente ao sistema capitalista. O capitalismo não age sobre
os movimentos emancipatórios unicamente com a intenção de eliminá-los: pretende
sempre incorporá-los, esvaziá-los de significado e potência revolucionária para
transformá-los em produto.
De uma perspectiva
histórica, fica evidente o sequestro de significado e o apagamento ostensivo da
história do Dia Internacional das Mulheres. Um dia que, nas palavras de
Alexandra Kollontai, deveria ser de “consciência política e de solidariedade
internacional” (KOLLONTAI, 1982) vem se tornando uma data comercial em que o
mercado ‘celebra’ estereótipos de gênero que
determinaram e limitaram a vida das mulheres.
É preciso escavar os
escombros que parecem se fechar sobre a história das mulheres que lutaram pelo
dia 8 de março, impedir tentativas de apagamento de seus rastros e de seus
nomes. Retomar o significado político da história do Dia Internacional das
Mulheres é uma importante ferramenta contra as fogueiras materiais e simbólicas
que continuam acesas.
FONTE:
https://blogdaboitempo.com.br/2016/03/07/as-que-vieram-antes-de-nos-historias-do-dia-internacional-das-mulheres/