Quando jovens nos anos 1980, os agricultores Li Hu Hu, 58, e Hao Sanhuan, 54, moradores de Hohhot, cidade no norte da China perto da divisa com a Mongólia, foram obrigados pelos pais a se casarem antes de terem se conhecido.
"Daquela época, não vale nem recordar. Era muito duro. Nossos pais tinham muitos filhos e não podiam cuidar de todos", diz Hao ao lado do marido.
Com roupas e mãos encardidas de terra, o casal mostra a pequena casa em reforma onde vive em meio a galinhas e carneiros.
Ambos trabalham em uma fazenda de cogumelos e é com o dinheiro dessa atividade que reconstroem a casa e que pagaram os estudos dos filhos.
Aos 28 anos, o caçula formou-se em química aplicada, fez mestrado e agora trabalha em Pequim.
Em um país com quase 1,4 bilhão de pessoas, Li e Hao fazem parte dos quase 800 milhões de chineses que deixaram para trás a pobreza extrema desde 1978.
Foi naquele ano dois após a morte de Mao Tse-tung (1893-1976), responsável por fazer da China um país comunista que o então secretário-geral do PCC (Partido Comunista Chinês), Deng Xiaoping (1904-1997), introduziu as reformas econômicas que levariam o país a crescer cerca de 10% por décadas. Até se transformar na segunda maior economia do mundo, atrás só dos EUA.
A rápida industrialização chinesa baseada na exportação, em baixos salários (cada vez mais raros) e na alta produtividade foram cruciais para a transformar o país.
Agora, a meta do atual dirigente com cargo vitalício, Xi Jinping, 66, é eliminar a miséria da China até 2020.
Após Xi tomar posse em 2013, o governo contabilizou 89 milhões de pessoas consideradas pobres no país. Em seis anos, segundo dados oficiais, esse total já foi reduzido para 13,1 milhões.
Concentradas sobretudo em áreas rurais, onde os rendimentos são 3,5 vezes menores do que nas cidades, elas agora são o alvo prioritário de projetos que têm por trás a mão pesada do Estado chinês.
Su Gouxia, do Gabinete de Combate à Pobreza, diz que a verba deste ano para a área equivale a 3,4% do orçamento público, ou 120 bilhões de yuans (R$ 67 bilhões, o dobro do Bolsa Família, que atende 13,7 milhões de famílias).
"Injetamos muito dinheiro também em transporte, educação e serviços médicos nas zonas rurais", diz Gouxia.
A fazenda de cogumelos onde Li e Hao trabalham em Hohhot faz parte desse gigantesco esforço de subsidiar negócios e empresas que contratem diretamente pessoas em situação miserável.
Na plantação foram investidos 650 milhões de yuans (R$ 360 milhões) em dinheiro público para a produção anual de 5.000 toneladas de diferentes tipos de cogumelos.
Não há lucro ainda, diz Wang Hailin, diretor do negócio que emprega cerca de 500 agricultores. Mas, em média, cada um deles ganha entre 3.000 e 4.000 yuans por mês (R$ 1.650 a R$ 2.200), dependendo da produtividade.
Essa é a mesma faixa de renda que o vendedor e criador de gado Liu Yongsheng, 43, obtém na feira de Cheng Feng, em Tongliao, mais ao leste do país e perto da fronteira com a Coreia do Norte.
Com a ajuda de empréstimos do governo, foram os administradores da própria feira que repassaram um financiamento de 100 mil yuans (R$ 56 mil) a Liu para que ele pudesse começar a criar e a comercializar gado. Como Liu, outras 41 pessoas foram ajudadas desde 2016.
"As mudanças aqui são muito grandes e estamos bem melhor do que quando éramos jovens", diz Liu, cujo sonho é fazer do filho de 17 anos um universitário.
A feira de Cheng Feng comercializa cerca de 8.000 cabeças por pregão e foi criada por um ex-militar do Exército chinês e membro do Partido Comunista Chinês.
Depois de montar a operação, ele constituiu uma célula do partido dentro do negócio, em uma configuração cada vez mais comum na China e testemunhada pela Folha em várias empresas visitadas.
Estima-se que atualmente mais de 70% das companhias privadas (inclusive estrangeiras) na China tenham células do partido em atividade, numa tendência que vem se acentuando desde a chegada de Xi Jinping ao poder.
Esses núcleos políticos servem tanto para que as empresas acompanhem melhor as políticas do governo central quanto para que possam se livrar de burocracias locais e obter vantagens como empréstimos subsidiados.
Em novembro de 2018, o jornal oficial Diário do Povo anunciou que Jack Ma, fundador do grupo Alibaba e uma das pessoas mais ricas do mundo, filiou-se ao partido, seguindo um caminho já trilhado por grandes empresários no país.
Ao todo, o PCC tem quase 90 milhões de membros na China e oferece um aplicativo para celulares a fim de que seus filiados acompanhem online as orientações do partido e os discursos de Xi Jinping.
"No nosso caso, a célula do PCC atraiu a participação de comerciantes vizinhos para a feira", diz Zhang Min, gerente de vendas da Cheng Feng e irmã do fundador.
Segundo Yu Xiaohua, professor da Universidade de Renmin, em Pequim, outra tendência do setor privado tem sido a de ampliar investimentos no interior, empregando mais pessoas em zonas ainda muito pobres, para fugir de custos e salários em alta nas áreas ricas do leste chinês.
Paralelamente, outra meta do governo para 2020 é elevar a 60% o total de chineses nas zonas urbanas. Para isso, cidades com população entre 3 milhões e 5 milhões foram franqueadas aos que possuem apenas registros rurais de residência o "hukou", uma espécie de passaporte interno.
Ações como essas e o formidável crescimento chinês nas últimas décadas levaram a China a protagonizar a maior história de sucesso da humanidade em termos de redução da pobreza.
Segundo o Relatório da Desigualdade Global da Escola de Economia de Paris, na qual atua o economista Thomas Piketty, desde o início das reformas de Deng Xiaoping, em 1978, a renda média chinesa saltou 780% como comparação, a alta nos EUA foi de 63%, e na França, de 38%.
Seguindo a tendência de quase todos os países do mundo, no entanto, isso veio acompanhado de um aprofundamento da desigualdade, deixando para trás uma época em que os 10% mais ricos na China e os 50% mais pobres ficavam com cerca de um quarto (27%) da renda cada.
Hoje, os 10% mais ricos se apropriam de mais de 40% dos rendimentos; e os 50% mais pobres, de menos de 15%.
A diferença se deu porque o ganho no topo da pirâmide nos últimos 40 anos foi muito maior, de 1.200%. Para a metade mais pobre, de 390%.
O fosso entre pobres e ricos abriu-se principalmente entre 1998 e 2006, quando muitas estatais do setor de serviços foram privatizadas.
No período, a classe média (os 40% "do meio" entre os 10% mais ricos e os 50% mais pobres) teve um ganho de 730%, apenas um pouco abaixo da média geral.
A boa notícia no caso chinês é que a desigualdade, embora estacionada em patamar elevado, vem parando de aumentar há quase 15 anos.
Por causa da China e também da maioria de seus vizinhos asiáticos, a Terra hoje poder ser considerada um "planeta classe média".
Nele, mais da metade da população (cerca de 3,8 bilhões de pessoas) vive com algo entre US$ 11 e US$ 110 ao dia (R$ 42 a R$ 416) e tem renda suficiente para comprar geladeiras ou motocicletas, segundo o Brookings Institution, de Washington.
"Mesmo onde a desigualdade ainda aumenta, o crescimento em países como China, Índia, Vietnã, Filipinas ou Indonésia é muito forte, a ponto de compensar a alta da disparidade de renda e causar a expansão de suas classes médias", diz Homi Kharas, do programa de Economia Global do Brookings Institution.
Na China, tanto a renda média dos 50% dos adultos mais pobres (cerca de R$ 1.400 mensais) quanto a da classe média (R$ 5.100) já superou, ainda que por pequena margem, a brasileira segundo o critério PPC (Paridade do Poder de Compra), que relaciona poder aquisitivo ao custo de vida local.
Para Lucas Chancel, coordenador do relatório, China e demais asiáticos protagonizam "o lado feliz da globalização", que proporcionou a melhora da renda nesses países altamente populosos e voltados à exportação.
"O outro lado da globalização é que a renda cresce em ritmo muito baixo para as classes trabalhadoras na América do Norte e em determinados países europeus. Alguns políticos já perceberam isso, e estamos vendo os efeitos", diz Chancel, em referência às ondas de populismo e protecionismo dos últimos anos.
Apesar das críticas de muitos líderes do Ocidente ao modelo de "capitalismo de Estado" chinês, sobretudo de Donald Trump nos EUA, alguns especialistas em desigualdade concordam que, em termos de combate à pobreza, ele traz resultados sólidos.
"Na China, as empresas privadas produzem cerca de 70% de todo o valor agregado e empregam quase 80% da força de trabalho, que é assalariada. Portanto, há pessoas legalmente livres trabalhando", diz Branko Milanovic, autor de "Global Inequality" (Harvard University Press).
"Isso não significa que o Estado chinês não tenha um papel ativo. Mas ele não é muito diferente do que o Estado francês teve nos anos 1980."
Ao longo das últimas décadas, o crescimento chinês foi baseado amplamente em investimentos em infraestrutura e empréstimos a empresas com recursos estatais para plataformas de exportação que usavam mão de obra em larga escala e barata.
Isso fez com que a taxa de investimentos da China alcançasse quase a metade do PIB e seja hoje equivalente a mais que o dobro da média dos países ricos. Já o consumo das famílias representa um terço do PIB, metade da taxa nos países desenvolvidos.
Com o aumento da renda média, a expectativa era de que os investimentos públicos pudessem refluir, que o Estado se desfizesse de boa parte de suas 150 mil estatais e que o consumo virasse o principal motor do crescimento.
Embora as grandes cidades chinesas agora estejam repletas de shoppings quase sempre cheios, a chegada de Xi Jinping ao poder parece ampliar novamente a participação do Estado na economia.
A partir de 2013, por exemplo, as estatais subiram de 35% para 80% sua participação em empréstimos bancários, segundo dados do economista Nicholas Lardy, do Peterson Institute for International Economics.
Por trás do novo intervencionismo estaria a tentativa de acelerar outra vez o investimento no menor patamar em 20 anos e a economia.
Com crescimento anualizado em torno de 10% até a crise global de 2008, o PIB perde força e neste ano deve ceder a 6% ou menos, dependendo do impacto da guerra comercial com os Estados Unidos.
O risco dessa estratégia, segundo especialistas, seria o de anabolizar demais a economia com empréstimos estatais para promover negócios que não encontrarão demanda correspondente no futuro.