José de Souza Martins – Foto: Marcos Santos / USP Imagens |
A ignorância é, desde a origem do Brasil, um instrumento de poder.
Os muitos casos esparsos que observei deixam claro que o saber popular sobre doença e saúde, mesmo nas grandes cidades, está numa relação de conflito e antagonismo como o saber do médico. O próprio presidente da República, por ignorância e oportunismo explícitos, expressa diretamente esse conflito, ao agir para contestar a medicina.
Num cenário desses, é difícil definir normas de saúde pública, especialmente em momentos de emergência e de urgência. É de limitada eficácia, numa disputa desse tipo, a recomendação de normas da noite para o dia.
Esta é uma interpretação impressionista desse desencontro. Mas do peculiar impressionismo de que se vale todo pesquisador e cientista para definir o primeiro e provisório quadro de sua observação científica sobre determinado problema ou questão.
Seu senso comum é diverso do senso comum popular. É, antes, uma sistematização de conhecimento científico, que lhe permite ver, na urgência de situações inesperadas, o que o conhecimento popular não permite ver senão impropriamente no plano mágico e, eventualmente, religioso.
O problema começa com o fato de que há no Brasil, historicamente, uma ampla ignorância induzida, que se tornou o fundamento de uma cultura paralela de permanente disputa entre juízos de realidade. A ignorância é, desde a origem do Brasil, um instrumento de poder.
É esse o cenário que define os problemas de saúde pública, em situação de emergência, como agora. Os serviços de saúde chegam à massa da população, seja dos pobres, seja da classe média, precariamente. É mais fácil fazer uma consulta médica do que fazer os exames recomendados pelo médico, que podem demorar meses. As coisas se complicam se for necessária uma internação, uma cirurgia.
Com isso, o médico se torna coadjuvante das improvisações e soluções da medicina popular, do curandeirismo, dos benzimentos. As pessoas ficam sabendo que suas dores e incômodos têm nome, nome de doenças. Mas a solução acaba sendo procurada fora do âmbito médico. Não é casual que aqui a medicina científica seja de fato apenas a segunda instância da medicina popular, da automedicação, das campanhas de liquidação de remédios nas farmácias.
Um dos aspectos mais problemáticos desse desencontro é a descrença no saber médico. Sou usuário de hospital público e gosto de acompanhar as conversas de sala de espera. As pessoas trocam informações sobre as queixas que estão levando ao médico. Os outros pacientes opinam, fazem diagnósticos, até dizem que exames o queixoso recomende ao médico para que apenas faça a requisição.
Quando falha o convencimento alternativo do leigo, também paciente, entra o diagnóstico religioso. A conversa, então, se torna proselitismo em favor do grande médico de todas as enfermidades. Já presenciei na espera do ambulatório do Hospital Universitário da USP entre três evangélicos, vinculados a três diferentes igrejas fundamentalistas, por eles mesmos identificadas, por que um impugnava a visão religiosa do outro em nome da sua.
Por trás da resistência à quarentena há um conjunto extenso de insuficiências históricas, sem solução numa situação de emergência, como esta, que é também a de insuficiência do governo.
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