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O texto critica multimilionários que apoiaram campanha "O Brasil não pode parar", que defende quebra da quarentena.
Gaudêncio Frigotto
Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, em relação ao universo, ainda não tenho certeza absoluta.
Albert Einstein
Albert Einstein
Escrevo este pequeno texto referindo-me, sobretudo, ao grupo de empresários multimilionários que financiaram ou os que apoiaram a campanha "O Brasil não pode parar". Mas, também, às mentes débeis e humanamente cínicas do núcleo ideológico e metafísico do governo federal que a encomendaram.
Desdenhar da ciência, das orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS), dos depoimentos dramáticos dos médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, bombeiros etc. não é só, como Einstein afirma, uma infinita estupidez humana, mas a participação ativa e consentida em milhares de mortes que podem ser evitadas.
"Os megaempresários são herdeiros de uma cultura cuja riqueza não se fez por seu trabalho, mas matando os índios como se fossem animais; em seguida, por quase quatrocentos anos, acumulando fortuna com o trabalho escravo e a compra e venda de seres humanos como gado."
Estas práticas
não acabaram. A dizimação dos índios continua, assim como a escravidão, que foi
abolida formalmente, mas continua nas relações sociais e econômicas. Como herdeiros dessa cultura, a alta
burguesia empresarial brasileira montou uma das sociedades mais desiguais do
mundo. Uma desigualdade que vem sendo mostrada globalmente neste momento
dramático da humanidade, causado pela covid-19.
As fortunas
dos atuais megaempresários, do campo e da cidade, resultam de três estratégias
que se potenciam, como mostrou Caio Prado Junior, antes mesmo das relações
capitalistas se generalizarem no Brasil. A primeira se afirma na
superexploração e espoliação do trabalhador, gerando uma assimetria descomunal
entre os ganhos do patronato e do trabalhador. A segunda é a estratégia de
preferir a compra da cópia, em vez de investir em ciência, tecnologia e
inovação. Por fim, tomam dinheiro subsidiado pelo Estado, o que dá origem às
dívidas externa e interna.
Por esse meio,
concorrem deslealmente com médios e pequenos empresários, que são os que geram
mais empregos, ou simplesmente inviabiliza-os. Também são hábeis e astutos em
pressionar os governos para receberem o perdão das dívidas. Francisco de
Oliveira definia estes empresários como vanguarda do atraso e atraso da vanguarda.
É essa minoria supermilionária, do passado e do presente, que, quando
minimamente ameaçados em seus interesses, organizam-se para apoiar e sustentar
ditaduras e golpes. O último foi em agosto de 2016.
A postura
insensata e genocida que estes empresários estão apoiando, insensíveis à clara
possibilidade de um aumento exponencial de mortes que podem ser evitadas,
explicita-se na cópia da campanha publicitária feita na cidade de Milão —
"Milão não para" —, mesmo depois que o prefeito dessa metrópole pediu
desculpas pelo erro. Milão contabiliza o maior número de mortes das mais de 11
mil ocorridas até hoje na Itália.
Por fim, fica
claro na atitude dos que arquitetaram a campanha no seio do governo, dos
empresários que a financiaram e dos que a apoiam uma regressão às teses
absurdas do malthusianismo do final do século XVIII e meados do século XIX.
O pressuposto
de Malthus era de que a produção da comida crescia em escala aritmética e a
população em escala geométrica. Por outro lado, condenava as políticas de assistência aos pobres no combate às
pragas e epidemias, pois, de acordo com ele, era aconselhável nas cidades
“construir as ruas mais estreitas, apinhar mais gente no interior das casas e
provocar o retorno das pragas. No campo, deveríamos construir as aldeias perto
de poços de água estagnados e, sobretudo, encorajar os estabelecimentos de
colonos em terrenos pantanosos e insalubres”. Sua conclusão é que deste modo a
natureza faria uma seleção natural e permitiria que os filhos da elite se casassem
muito cedo e tivessem quantos filhos
quisessem.
A história
mostrou que a dificuldade não é a falta de produção de alimentos. Há até
superprodução, como mostra Jean Ziegler, consultor da Organização das Nações
Unidas (ONU). O problema é que essa produção não está na lógica de satisfazer a
necessidade elementar de comer, mas na ordem do lucro e, portanto, para quem
pode comprar. O argumento de que vai faltar comida se os indivíduos não
voltarem ao trabalho é falso. Onde estão os estoques de um país celeiro e um
dos maiores produtores de carnes do mundo? Por outro lado, os cientistas, os
médicos, os enfermeiros e todos os representantes da área da Saúde não estão
solicitando que o país pare por seis meses, mas apenas por um período, para que
não haja um colapso do sistema de saúde e possam salvar vidas.
O argumento do
governo e dos empresários que financiaram a campanha "O Brasil não pode
parar" é o mesmo de Malthus. Deixem que o vírus se espalhe, morrerão os
que têm doenças crônicas e os mais velhos. O que os cientistas estão dizendo,
inclusive o Ministério da Saúde, é que, se não for feito o controle, não haverá
leitos para todos, e milhares morrerão por falta de aparelhos hospitalares
suficientes para atendê-los. Os mais afetados serão os pobres das grandes
metrópoles, apinhados em favelas. A campanha foi interrompida oficialmente pela
Justiça, mas corre nas redes sociais. O que ela afirma é: não importa quantos
irão morrer, o que importa é salvar a economia. O que não se diz é: salvar os
lucros do patronato mais poderoso e rico e do capital financeiro.
Uma semana de
panelaços em todo país, a emocionante solidariedade das comunidades pobres, a
atitude da maioria dos governadores e prefeitos e uma nova consciência coletiva
mostraram que o Brasil, assim como o mundo, não poderá ser mais o mesmo.
O grafite
estampado num muro em Hong Kong — “Não podemos voltar ao normal, porque o
normal era exatamente o problema” — aplica-se perfeitamente ao atual governo e
aos financiadores da campanha que nos dizem que a vida não importa, mas sim os
lucros.
* Gaudêncio
Frigotto é filósofo, pesquisador e educador, professor titular (aposentado)
na Universidade Federal Fluminense (UFF) e, atualmente,
professor Associado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Edição: Camila
Maciel
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